Obscurantismo
, João César das Neves
in Diário de Notícias, 18 de Novembro de 2002
Quase 30 anos depois do
25 de Abril, é estranho ver em Portugal hoje alguém a clamar por uma
liberdade fundamental.
A nossa sociedade está longe de ser perfeita, mas orgulhamo-nos
justamente de termos garantidos todos os direitos cívicos.
Todos, menos um: não há liberdade educativa. O encontro do Fórum
para a Liberdade de Educação, realizado este fim-de-semana em
Lisboa, chamou dramaticamente a atenção para esta grave falha
democrática do nosso sistema.
Mas o problema não é apenas de direitos.
A falta desta liberdade, como antes das outras, também se está a
traduzir em sérios prejuízos para o desenvolvimento do País.
O desastre da educação é, sem dúvida, a mais preocupante das nossas
dificuldades. Os testes internacionais mostram bem que aí Portugal
não está na cauda da Europa. Está mesmo no meio de África.
Gerações de estudantes perdem o seu tempo nas escolas para saírem
sem os conhecimentos mínimos. A maioria chega aos empregos e
universidades com fortes vícios de raciocínio e lacunas graves de
conhecimento e metodologia. Não sabem pensar, calcular, escrever;
não conseguem trabalhar, analisar situações, resolver problemas. São
antes especialistas em matérias abstrusas e minúcias pedagógicas. Os
nossos estudantes são vítimas do obscurantismo.
A causa desta situação é simples e evidente: Portugal adoptou um
sistema de ensino estalinista. Naturalmente que os resultados são
soviéticos.
Vivemos num modelo de programa único, de pedagogia única, de exame
único, de ensino único. Só não temos livro único porque é preciso
mudar todos os anos para alimentar autores e editoras. Os
professores adoram o conforto do funcionalismo. O ministério
delicia-se com o poder do gigantismo. Os custos explodem. Os
resultados estão à vista. Os mais desastrosos sentem-se nas línguas,
sobretudo o Português, e na Matemática. Mas os mais patentes e
prejudiciais registam-se no campo da moral.
A escola tem um papel essencial na formação humana dos seus
estudantes. Isso é verdade em todos os graus de ensino, mas vital no
básico. Neste tema, o modelo estalinista do Ministério da Educação
embate contra a evidência: só é possível fazer educação moral dentro
de um quadro cultural específico. Não existe uma ética geral e
abstracta. Fora dos princípios genéricos (quase) consensuais, toda a
aplicação da moral se faz dentro de uma atitude vivencial
particular. Há uma ética cristã e uma ética muçulmana, uma ética
marxista e uma ética liberal, uma ética positivista e uma ética
burguesa.
Como nas viagens, o caminho é determinado pelo destino. Mas o Estado
quer ser neutro, laico, imparcial.
Que fazer?
A solução passa por um método simples: a fraude.
O Estado assume explicitamente que a formação ética tem de ser
específica e pede a colaboração da sociedade nessa leccionação.
Mas tem usado dois tipos de embuste na resposta a este problema. O
primeiro, utilizado por exemplo na célebre disciplina de Educação
Sexual, é o de impor um quadro cultural particular sob a aparência
de neutralidade. O ministério adjudicou discretamente a leccionação
dessas matérias à Associação para o Planeamento da Família. Esta,
afirmando ensinar resultados científicos e informações rigorosas,
está de facto a canalisar modelos de comportamento e opiniões muito
particulares.
O programa previsto finge tratar de temas sanitários e regras
higiénicas, mas é a condenação da castidade, da fidelidade, da
temperança, da elevação do amor e a promoção declarada da
promiscuidade, do adultério, da homossexualidade, do aborto.
A segunda fraude, ainda mais atrevida e infame, foi utilizada na
questão da Educação Moral e Religiosa.
Aí, a instituição contactada às claras foi a Igreja Católica.
Naturalmente, o ministério não pode impor a obrigatoriedade da
versão católica.
Isso é liberdade de educação. Mas depois não consegue arranjar
alternativas para os outros alunos do básico (de facto uma pequena
minoria). Isto é falta de liberdade de educação.
Perante esta sua fragorosa incompetência, o ministério envereda pelo
paroxismo do ridículo: retira a Educação Moral das horas normais de
ensino. Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a
moral passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa
lectivo, que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto
sem pestanejar! Anunciam uma tal aleivosia sem corar de vergonha!
Promulgam uma coisa destas sem serem castigados!
Estes são apenas dois exemplos entre mil. Por isso é tão importante
que se compreenda que a luta por esta liberdade cultural é tão
candente e decisiva como os antigos combates pela libertação
política. Tal como então, uma clique de iluminados, em nome de um
modelo arcaico, está hoje apostada no obscurantismo e no atraso do
País.
É fundamental que saiam frutos de iniciativas como o Fórum para a
Liberdade de Educação. A nossa democracia e o nosso desenvolvimento
dependem disso.
naohaalmocosgratis@vizzavi.pt
Com um desplante cândido, os nossos pedagogos assumem que a moral
passa a ser optativa, que a ética não pertence ao programa lectivo,
que os valores são actividade circum-escolar. Dizem isto sem
pestanejar!