Público - 11 Fev 03
É Possível Salvar o Ensino Superior?
Vital Moreira
A partir do ano lectivo de 2004-05, o acesso ao ensino superior, tanto
universitário como politécnico, vai exigir uma classificação de 9,5 valores
(escala 0-20), no exame nacional, em relação às provas específicas de cada
curso. Com isso terminará finalmente - mesmo assim com o adiamento de um ano em
relação à data inicialmente anunciada pelo Governo - o escândalo nacional, com
que sucessivos governos pactuaram, de deixar inundar as escolas superiores com
alunos notoriamente destituídos da preparação minimamente exigível justamente
nas disciplinas nucleares do curso a que se candidatam (por exemplo, Matemática
nos cursos de engenharia ou Português nos cursos de línguas e literaturas,
incluindo a língua e literatura portuguesa!).
Mas o mal está feito e não vai ser fácil corrigi-lo. O estudo do prestigiado
Centro de Investigação das Políticas do Ensino Superior (CIPES) veio mostrar a
dimensão do desastre. Mesmo no caso das universidades públicas, onde se deveria
esperar mais exigência, só três de entre as 14 existentes é que contam uma
percentagem negligenciável de alunos com nota inferior à referida (Aveiro,
"Clássica" de Lisboa e Coimbra, todas com menos de 0,5 por cento). Há várias
entre os dez por cento e os 20 por cento e uma com 26 por cento (um em cada
quatro estudantes), cabendo esse triste troféu à Universidade do Algarve (embora
seja de admitir que os números incluem também o ensino politécnico, que, no
Algarve, está integrado na universidade).
No caso dos politécnicos, o panorama é devastador. Poucos ficam abaixo dos dez
por cento, vários estão acima dos 30 por cento. Aqui os piores no "ranking"
estatístico são os institutos politécnicos de Lisboa e do Porto, ambos com cerca
de 45 por cento (quase metade dos estudantes), com Coimbra muito perto (perto
dos 30 por cento). A razão destes números negros dos politécnicos das três
grandes cidades deve-se, seguramente, ao facto de os melhores alunos serem
"desnatados" pelas universidades respectivas, deixando para o ensino politécnico
a segunda escolha.
Não se conhecem os números para o ensino particular, talvez por pudor. Mas há
indícios fortes de que aí as coisas são muito piores, com a generalidade dos
estabelecimentos com taxas superiores a 50 por cento, incluindo situações a
atingir provavelmente a fasquia dos 80-90 por cento.
Seja como for, o panorama é suficientemente negro para podermos fazer de conta
que os dados não têm importância. Muitas escolas são frequentadas por muitos
alunos sem preparação nem conhecimentos adequados à frequência do ensino
superior (as disciplinas específicas dão para imaginar a sua preparação em
geral, provavelmente ainda pior...). As intoleráveis taxas de insucesso escolar,
apesar da contínua descida do nível de exigência, têm aí a sua principal
explicação.
De resto, mesmo a nota mínima agora estabelecida está longe de dar garantias de
razoável preparação para frequentar com êxito cursos de ensino superior,
sobretudo no ensino universitário. O desgraçado processo de "elementarização" do
ensino básico e secundário nas últimas décadas em Portugal, acompanhado de
inflação das respectivas classificações na generalidade das escolas, faz com que
mesmo notas aparentemente confortáveis não tenham adequada correspondência na
capacidade e preparação dos alunos que chegam ao ensino superior. Não é por
acaso que, sendo a nossa taxa de frequência do ensino secundário
comparativamente baixa, pelo menos em termos europeus, temos no entanto uma taxa
de frequência do ensino superior mais elevada do que a de países com muito
melhores indicadores de frequência do ensino secundário.
Não admira por isso a convicção generalizada de que uma parte considerável dos
alunos do ensino superior, nomeadamente no ensino universitário, não dispõem de
condições de obter uma licenciatura digna desse nome. E isso é tanto mais assim
quanto, na generalidade das universidades e politécnicos, poucos factores
favorecem a recuperação da má preparação inicial. No ano escolar, há abundância
de férias, escassez de tempo lectivo e estudo e excesso de tempo de avaliação
(do pouco que se aprende...). Em geral, a frequência das aulas não é obrigatória
e poucas vezes conta sequer como factor de avaliação. Os métodos pedagógicos
incentivam a passividade dos alunos. A falta de avaliação objectiva das
instituições não permite diferenciar credivelmente as boas das más. A pouca
exigência do mercado de graduados, a começar pelo sector público, prescinde de
provas de avaliação para seleccionar os melhores, aceitando as classificações de
curso pelo seu valor facial (o que gera uma competição perversa, através da
inflação das notas). Por conseguinte, há muitas razões para os alunos preferirem
as escolas mais "fáceis" e para as escolas serem exigentes; e há poucas razões
para uns e outras fazerem o contrário. O investimento na exigência e na
qualidade não compensa.
Como é que se chegou aqui?
Nesta história não há ninguém inocente e todos têm culpas no cartório. Primeiro,
os sucessivos governos que permitiram a deriva do ensino superior, deixando
proliferar escolas a esmo, públicas e privadas, e desregulando os requisitos de
acesso e os níveis de qualidade, a fim de alimentar o apetite fácil dos
promotores privados, aliviar a pressão dos alunos saídos do secundário sobre o
mercado de emprego e empolar as estatísticas de frequência do ensino superior
(para OCDE ver). Segundo, as instituições de ensino superior, que se abstiveram
de mecanismos de auto-regulação colectiva, através das suas instâncias
associativas (a começar pelo CRUP, no caso das universidades públicas).
Terceiro, os principais agentes do sector, ou seja, os professores, a muitos dos
quais o súbito alargamento do mercado da docência universitária, fomentado por
um indecente facilitismo nas acumulações, proporcionou consideráveis acréscimos
de rendimento. Quarto, os meios de comunicação, onde um avultado número de
jornalistas se viu alcandorado ao prestigioso papel de "professor universitário"
(basta recordar a animosidade com que a generalidade da imprensa tratou o
célebre relatório do grupo de trabalho sobre o ensino superior particular, de
1998, que revelou os podres desse sector).
Nem se invoque em vão uma pretensa democratização do ensino superior. Na
verdade, o laxismo no acesso e a depreciação da exigência só servem para
facilitar aos que podem suportar as despesas adicionais (o que no caso do sector
privado requer o valor das propinas), a entrada sem barreiras no ensino
secundário ao ensino superior e o benefício dessa enorme prerrogativa, em termos
sociais, profissionais e económicos, ao passo que os menos abonados, mesmo que
melhores, ficam de fora. Um sistema democrático de acesso ao ensino superior não
corresponde a uma demagógica abertura sem requisitos apropriados, mas antes a um
sistema que assegure a igualdade de oportunidades, permitindo o acesso de todos
os capazes, independentemente de factores económicos, e vedando-o aos incapazes,
mesmo que tenham todo o dinheiro do mundo.
Há coisas que precisam de ser ditas, por mais incorrectas politicamente que
pareçam. A ideia de democratizar o ensino superior pela via da banalização do
acesso e pela crescente degradação da sua qualidade não é somente um crime
contra a própria ideia de ensino superior, é também politicamente pouco honesta.
Primeiro, é uma miragem populista pensar que o ensino superior (em especial, o
ensino universitário) é acessível a toda a gente, independentemente dos dotes
intelectuais, da preparação, da capacidade de trabalho e da motivação. Segundo,
sem requisitos de acesso e sem mecanismos de correcção dos impedimentos de ordem
económica, o actual sistema não passa de um meio de forçar todos os cidadãos a
pagarem o ensino superior dos que mais podem.

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