Expresso - 25 Jan 03

Praxes debaixo de fogo
 Monica Contreras e Susana Branco

O Governo mandou ao MP o caso da aluna praxada. A escola não deu explicações
Sérgio Granadeiro
 
O CASO da aluna praxada na Escola de Saúde Jean Piaget, de Macedo de Cavaleiros, pode ser objecto de um inquérito-crime - defende a Inspecção-geral da Educação, em relatório concluído e entregue esta semana ao ministro da Ciência e do Ensino Superior.

O documento sugere a Pedro Lynce que exija à escola o envio de todos os documentos relacionados com o caso de Ana Sofia Damião , uma vez que os próprios inspectores não os conseguiram obter. O presidente do complexo, Luís Cardoso, terá mesmo recusado facultá-los aos agentes, limitando-se a enunciar um conjunto de iniciativas em marcha. Quando recebeu a carta da estudante, o ministro desconhecia que armas legais tinha para agir e pediu a intervenção da IGE. No relatório, a Inspecção recorda que cabe ao Ministério não só proceder ao reconhecimento do interesse público das escolas, mas também fiscalizar o cumprimento da lei e aplicar sanções. Ou seja, aconselha o ministro que passe a pente fino a documentação que lhe vier a ser entregue pelo Instituto Piaget, para «aferir da regularidade e normalidade do funcionamento» dos órgãos próprios do estabelecimento e saber da possibilidade de intervir.

A IGE sugere ainda que se produza legislação sobre o procedimento disciplinar dos alunos e os deveres, direitos e garantias dos estudantes.

Sem resposta até ao momento do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, Lynce decidiu entregar o relatório à Procuradoria-Geral da República e à associação das universidades privadas.

Movimentos antipraxe

O caso de Ana Sofia veio despertar a opinião pública para uma questão recorrente: as praxes. E lembrar aos reitores e governantes que falta legislar sobre o código disciplinar dos estudantes. A meia dúzia de casos que chegou ao Ministério entre 1997 e 1999 foram arquivados. Mas as humilhações ficaram, em regra, com quem as sofreu. Na faculdade de Ciências da Universidade do Porto, Ana Leitão admite ter sofrido na pele a praxe académica que a levou a chorar quase todos os dias quando voltava para um quarto alugado no Porto. Sozinha na cidade, a aluna oriunda de Setúbal, deparou-se na primeira semana universitária com o que diz serem brincadeiras estúpidas e situações humilhantes. Mas foi a chantagem psicológica que mais marcou a estudante de 21 anos, chocada com o episódio do caloiro infiltrado:«Um dos doutores fingiu-se de caloiro para fomentar intrigas entre todos e, no nosso caso, a mentira foi que um de nós tinha assediado uma doutora. Depois de nos culpabilizarem com vários insultos, apareceu trajado no dia seguinte, a gozar». Ana duvidou de tudo e de todos: «De repente os amigos que criei eram todos falsos».

Foram casos como este que fizeram nascer, em 1996, o movimento Antípodas: um grupo antipraxe formado por alunos de diversas faculdades do ensino público, privado e politécnico da academia do Porto. O grupo realiza campanhas junto das populações estudantis para que estas não adiram a essas práticas académicas, mas antes procurem formas alternativas de recepção aos caloiros, tentando integrá-los em vez de os discriminar.

O MATA (Movimento Antipraxe Académica), fundado por volta de 1992, tem a mesma missão. Informar os caloiros que não são obrigados a aceitar a praxe. «É um sintoma cultural preocupante ver pessoas abusar e espezinhar outras pessoas», afirma Ricardo Noronha, um dos representantes. E adianta que a recepção ao caloiro e todas as actividades aparentemente ligadas à introdução do novo aluno na vida universitária, «são um verdadeiro negócio». Noronha salienta que é nas universidades mais recentes e sem tradição que as praxes assumem contornos mais violentos.

De joelhos, durante cinco horas

Discriminação foi exactamente o que sentiu um aluno do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto quando, há três anos, entrou para o primeiro ano do curso de Contabilidade e Administração. O primeiro e único dia em que participou na praxe deixou-lhe má memória: sentiu-se lesado pela «violência verbal extrema» com que foi acolhido pelos praxistas, bem como a primeira «prova» a que o submeteram: «Obrigaram-nos a ficar, durante cinco horas, num anfiteatro de joelhos e com as costas curvadas a ouvir as regras do jogo que iria prolongar-se por mais duas semanas», recorda. Para este caloiro a praxe ficou por aqui. Mas a sua determinação em não se submeter mais aos requisitos dos doutores rotulou automaticamente o estudante: «Quando as aulas começaram, não conhecia ninguém e todos me conheciam pela negativa».

Fausto Correia, coimbrão, recorda o fim da praxe em Coimbra, a única universidade que antes do 25 de Abril tinha tradição de rituais na recepção ao novo aluno. Com a crise académica de 1968-69, os estudantes decretaram o luto e suspenderam a praxe e o uso da capa e da batina, recuperados nos finais dos anos 70. Mas a praxe «jamais esteve ligada à sexualidade», sublinha o deputado socialista. E recorda que o pior que podia acontecer a um caloiro era ser rapado - o que só acontecia se ele andasse na rua depois das seis da tarde. Só escapava se estivesse «de braço dado com uma senhora».

Analisando algumas praxes que se tornam mediáticas pela sua violência, Fausto Correia não tem dúvidas: «É a pior maneira de alcançar coisas insondáveis». Mas o aumento do batalhão feminino nas universidades significará, defende, uma outra praxe. Ou o fim dela.