Público - 23 Dez 02
A Esquerda e a Liberdade na Educação
Por FRANCISCO VIEIRA E SOUSA,
Na Dinamarca, país não raras vezes governado pela esquerda ao longo do século XX,
a liberdade de escolha da escola por parte da família constitui um dos
princípios consensuais do sistema de ensino. Na Suécia, foi um governo
socialista que introduziu a possibilidade de escolha da escola estatal,
possibilidade que viria depois a ser alargada aos estabelecimentos privados
Num artigo recente (PÚBLICO, 24/11/2002), João Teixeira Lopes (JTL), deputado do
Bloco de Esquerda, apontou o dedo ao discurso acerca das questões da educação da
"nova direita ultra-liberal, profundamente inspirada e motivada por George W.
Bush". Segundo o autor, essa direita, "ao clamar em favor da liberdade de
escolha das escolas por parte das famílias e, em simultâneo, pela liberdade de
projectos educativos, mais não faz do que defender subliminarmente a
selectividade e higienização social". Aliás, quando "os porta-vozes da nova
ultradireita reclamam o carácter supletivo do papel do Estado e a centralidade
da família, mais não pretendem do que acabar com a escola de massas". Dias
depois, foi a vez de Fernando Rosas voltar ao tema, utilizando semelhante
argumentação (PÚBLICO, 27/11/2002).
Não quero rebater as nocivas consequências que ambos atribuem à liberdade de
escolha e à centralidade da família, aliás dois princípios consignados na
Constituição, pois a existência de perigos inerentes à liberdade de escolha não
é fundamento para a sua recusa, mas tão só motivo para que se desenvolvam,
paralelamente, mecanismos correctivos, designadamente de discriminação positiva,
que diminuam os efeitos negativos que dela possam derivar.
Acresce que o actual sistema de hegemonia estatal, para além dos seus fracos
resultados, também acarreta perigos, dois dos quais identificados pelo próprio
JTL: o centralismo "napoleónico" e a possibilidade de "imposição de um
arbitrário cultural". Pior, este sistema, pelo seu gigantismo, burocracia e
imobilismo, acaba por deixar germinar dentro de si os males que deseja
esconjurar: como o próprio JTL reconhecerá, não faltam no sistema de ensino
estatal exemplos das tais "escolas-modelo" de "meninos de 'cima'", que ele
afirma serem características dos sistemas que privilegiam a escolha parental.
Feitas estas ressalvas, gostaria de centrar a atenção na ligação nada inocente
entre a "nova direita ultra-liberal" e a liberdade de escolha na educação.
Começo por lembrar que o debate nos EUA antecede de há anos a eleição do
presidente Bush. Aliás, o primeiro programa experimental de liberdade de
escolha, o Programa de Escolha Parental de Milwaukee, só foi possível porque
influentes líderes democratas locais cortaram com a tradição de recusa do
cheque-ensino do seu partido e apoiaram a iniciativa. Na Dinamarca, país não
raras vezes governado pela esquerda ao longo do século XX, a liberdade de
escolha da escola por parte da família constitui um dos princípios consensuais
do sistema de ensino. Na Suécia, foi um governo socialista que introduziu a
possibilidade de escolha da escola estatal, possibilidade que viria depois a ser
alargada aos estabelecimentos privados.
Em contrapartida, em Itália e na França, onde a direita governou durante quase
toda a segunda metade do século passado, temos dos sistemas de ensino mais
centralizadores da Europa. Em Portugal, Salazar asfixiou quanto pode o ensino
particular.
Assim, verifica-se que a questão da liberdade de escolha na educação ultrapassa
em muito uma lógica estrita de esquerda e direita e, ao reduzi-la a isso, os
autores só podem querer condicionar os restantes partidos de esquerda,
designadamente o PS. Esta é aliás uma estratégia recorrente no Bloco de
Esquerda, que em todas as matérias procura identificar uma fractura ideológica
de forma a colar à extrema-esquerda a esquerda democrática e o centro-esquerda,
assim se assumindo como verdadeiro líder da oposição ao governo de direita.
O PS, que nas palavras de Manuel Maria Carrilho necessita de "pensar a acção
pública fora da dependência do Estado, [de] repensar a noção de serviço público
- e, portanto, a justificação da intervenção do Estado -, procedendo a um
rigoroso inventário do que, neste âmbito, e face às lições da história e às
dinâmicas actuais, é preciso manter, suprimir ou inventar" (Expresso,
23/11/2002), não se deixará com certeza enredar por esta estratégia no seu
caminho de renovação.
A educação é, aliás, uma das áreas onde os governos da Nova Maioria souberam
inovar, mesmo em matéria de liberdade na educação. Exemplos disso são a
atribuição de bolsas de estudo aos estudantes do ensino superior privado, a
criação de um modelo de financiamento da componente educativa do ensino
pré-escolar que prevê uma comparticipação estatal variável da propina das
crianças que frequentem um jardim de infância privado, e o projecto piloto
desenvolvido no Algarve pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade, que
previa o apoio financeiro directo às famílias, permitindo a estas escolherem a
creche ou jardim de infância, fosse esta da rede estatal, particular ou social.
Naturalmente que, à medida que o debate acerca da liberdade na educação seguir o
seu curso, o BE estará na cómoda posição de ser do contra, sua posição
característica. Já o PS, se quiser mesmo "repensar a noção de serviço público",
terá de aceitar o difícil desafio de conceber um projecto que, apesar de
promover essa liberdade, contenha mecanismos de protecção dos mais
desfavorecidos e de controlo da concorrência e competição entre as escolas, para
que, sem medo de estar ao lado da "nova direita ultra-liberal", se diferencie
dela. É que nesta, como noutras reformas, e mesmo na própria democracia, ao
contrário do que alguns pretendem, não é o princípio que separa a esquerda da
direita, mas a forma como este é concretizado.
Militante do PS e apoiante do Fórum para a Liberdade na Educação

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