Público  - 26 Set 08

 

Quem te viu já não te vê
Carlos Fiolhais

 

Um fenómeno sintomático do moderno audiovisual é o êxodo dos jovens da televisão para a Internet

 

Na passada segunda-feira liguei a televisão na RTP1 para ver o programa da Fátima Campos Ferreira e apareceu-me, em vez dele, um jogo do Paços de Ferreira. O prós era o Paços de Ferreira e o contras era o Benfica. O futebol ameaça tornar-se omnipresente na televisão pública, agora que os direitos da "Liga Sagres" foram adquiridos pela RTP até ao ano de 2010.

 

Embora não desgoste de ver uma boa partida de futebol, confesso que desliguei a televisão e me liguei à Internet para "blogar". Não penso que a transmissão de futebol profissional seja serviço público. Se me tivessem perguntado - infelizmente não perguntaram -, teria dito que o dinheiro dos impostos não devia alimentar os nebulosos negócios da bola. Aliás, nos países mais desenvolvidos, esse tipo de jogos passa só em canais pagos e só vê quem estiver disposto a pagar.

 

Não fui só eu que abandonei a televisão que, cheia de futebol, novelas e reality shows, está imprópria para consumo. Com efeito, um dos fenómenos mais sintomáticos do moderno audiovisual tem sido o êxodo das camadas mais jovens da população da televisão para a Internet. Em Portugal, tal como no resto da Europa, os jovens já passam mais tempo no computador do que diante da TV, já preferem o YouTube aos Morangos com Açúcar. Quem a viu já não a vê!

 

Bem sei que a televisão continua, entre nós, a ser consumida em demasia. Portugal é dos países europeus com maior dependência da "caixa mágica". Li algures na Internet que só existem, em todo o país, 1400 casas sem televisão. Segundo estatísticas do Observatório Europeu do Audiovisual de 2004, somos até, de todos os países europeus, aquele onde há mais casas com pelo menos duas televisões (71 por cento de lares têm dois ou mais aparelhos). Segundo dados da Marktest de 2008, a nossa média de consumo diário de televisão é de três horas e 37 minutos. E as pessoas com mais de 65 anos passam, em cada dia, mais de cinco horas e meia em frente ao televisor. Contudo, o comportamento dos jovens - e não só - indicia que o público começa a estar farto de ter cada vez mais do mesmo, quando ao lado há alternativa...

 

Os chamados "canais generalistas", TVI, RTP e SIC, na ganância de captarem audiências e maximizarem os lucros, escusam de descer mais para mostrar que não há limites para o telelixo. Já o mostraram e demonstraram. Se os jogos são maus, as novelas são piores e - a verdade seja dita, paguem-me ou não - os reality shows são péssimos. Já não é só o corpo que se vende, mas a alma. Quanto aos noticiários, chegam a estender-se por mais de uma hora, como não acontece em mais nenhum país civilizado, relatando a rotura de um cano e a fuga de um gato. Uma das medidas mais fáceis em prol do desenvolvimento poderia ser imediata: encolher os noticiários, escolhendo as notícias. Ao argumento useiro e vezeiro de que as audiências só querem a falta e o penálti, traição e ciúme, a verdade e a mentira, o cano e o gato, já respondeu o filósofo Karl Popper em Televisão, Um Perigo para a Democracia (Gradiva, 1995): "Nada no seio da democracia proíbe as pessoas mais instruídas de comunicarem o seu saber às que o são menos. Pelo contrário, a democracia sempre procurou elevar o nível da educação; é essa a sua autêntica aspiração."

 

Dizem que foi o Governo que mandou comprar os direitos do futebol. Não me admirava nada, pois, para distrair da crise, o povo sempre pode ver uns jogos. Também pouca gente se admirará que haja cuidada e atempada intervenção governamental no concurso do quinto canal generalista, um grande negócio a avaliar pela voracidade das partes interessadas (Portugal Telecom, Zon, Controlinvest e Cofina, curiosamente os dois últimos com ligações ao futebol). Noutro megaconcurso que já decorreu, o da televisão digital terrestre, que vai implicar todos os canais, ninguém se admirou com a concessão à Portugal Telecom, onde o Estado tem uma golden share. Vai haver ainda mais televisão, mais falta e penálti, ciúme e traição, verdade e mentira, cano e gato. Mas vamos nós vê-la? Professor universitário