O historiador do futuro entenderá uma sociedade onde
era mais fácil desligar-se do marido do que de um
empregado?
No PÚBLICO de sábado passado, o padre Gonçalo
Portocarrero de Almada observou que em Portugal se
tornara mais fácil aos cidadãos, pela lei e segundo
os procedimentos nela previstos, desligarem-se do
marido ou da mulher, do que de um empregado. Talvez
nem todos aceitem esta comparação entre as leis do
casamento e do trabalho. Mas vamos admitir que um
dia, daqui a muitas gerações, algum historiador
futuro faça o mesmo para tirar conclusões sobre como
nós, portugueses de 2008, pensávamos e vivíamos.
Como dirá que nós éramos?
Talvez contraditórios, se aceitar a interpretação
que das leis fizeram os seus proponentes. Porque a
lei do casamento convencê-lo-á de que, em 2008,
concebíamos as relações entre as pessoas como
fundamentalmente contingentes, sem demasiadas
consequências; e as leis do trabalho, como
fundamentalmente estáveis, e com sérias
consequências. Ao princípio, ocorrer-lhe-ão duas
hipóteses para explicar a inconsistência. Uma é a de
que dávamos mais valor ao trabalho do que ao afecto:
um povo de formigas, disponíveis para mudar de
família, mas não de emprego. A outra, que
constituíamos uma sociedade plural, onde se chocavam
duas correntes opostas: uma que gostaria de reduzir
as relações a encontros efémeros, unicamente
dependentes do interesse e vontade de cada um, e
outra que pretenderia consagrá-los como uniões
firmes, condicionadas por um interesse geral. A
primeira corrente teria ganho o debate do casamento,
mas perdido, por qualquer razão, o do trabalho.
Se prosseguir a pesquisa, rapidamente o historiador
do futuro descobrirá os limites desta hipótese.
Porque as duas leis, aparentemente contraditórias,
foram promovidas pelo mesmo partido, no governo em
2008. Usando as categorias de esquerda e direita, o
historiador concluirá, a partir dos debates, que à
esquerda se desejava, em geral, leis que
facilitassem a dissolução dos contratos no
casamento, mas não no trabalho; e à direita, também
em termos gerais, o contrário. Nem à esquerda nem à
direita, se usavam argumentos de carácter religioso.
Todos reclamavam defender a suposta "parte fraca"
das relações (mulher e filhos num caso, empregados
no outro), e todos acreditavam no poder das leis
para gerar situações sociais. Mas à direita,
aparentemente, favorecia-se como modelo uma
sociedade civil forte com uma economia dinâmica, o
que pressupunha unidades familiares consolidadas e
agentes económicos livres para recorrer ao trabalho
de um modo flexível; e à esquerda, havia mais
disponibilidade para aceitar a tutela do Estado, e
portanto não incomodava a ideia de uma sociedade
atomizada e de uma economia limitada.
Mais uma vez, porém, o nosso historiador será
forçado a renunciar à explicação. Para começar,
porque adoptou um ponto de vista parcial: à direita,
em 2008, defendia-se o modelo que lhe foi atribuído,
mas à esquerda, sobretudo na esquerda governamental,
não se advogava um Estado forte numa sociedade e
numa economia fracas. Neste ponto, o historiador do
futuro terá duas alternativas. Uma é atender às
necessidades eleitorais da esquerda governamental,
confrontada em 2008 com previsões de voto demasiado
altas a favor das esquerdas da oposição. Ora, as
esquerdas da oposição ensinavam que ser de
"esquerda" era golpear a "religião" e a "burguesia",
e que fomentar a precariedade no casamento (sacralizado
pela igreja) e combatê-la no trabalho seriam outros
tantos golpes. Para roubar audiência às esquerdas da
oposição, dava jeito à esquerda governamental passar
o mesmo programa (de sentido contestado no caso do
trabalho).
Mas talvez ao historiador do futuro custe a admitir
que em Portugal, em 2008, coisas fundamentais
estivessem sujeitas a cálculos eleitorais. Por isso,
será quase de certeza tentado finalmente pela tese
de que as leis satisfaziam, de facto, expectativas
geralmente partilhadas - o que explicaria, aliás, o
facto de até o maior partido à direita ter fornecido
alguns votos à lei do casamento.
Que prometiam as leis? Com relações de trabalho
condicionadas pelo Estado, o emprego representaria,
na prática, uma renda, que o empregador só poderia
cortar passando através do buraco da agulha
burocrática; com casamentos descartáveis sem culpa,
seria possível recorrer ao registo civil para
justificar festas e luas-de-mel e depois repudiar o
contrato sem comprometer o património.
Eis o que os portugueses, em 2008, aparentemente
desejavam: "trabalho" assegurado pelo Estado, e
"afecto" sem responsabilidades. E posto isto, o
historiador dirá: "eles eram assim". Não somos
assim? Historiador