E se a lei do divórcio violar direitos previstos
na Constituição? José Manuel Fernandes
Está em causa saber se uma lei pode declarar, com
efeitos retroactivos, que um regime livremente
estabelecido num contrato de casamento deixa de ser
válido para os casos de divórcio ou se isso viola
direitos constitucionais
A Assembleia aprovou ontem, com alterações mínimas,
uma lei que modifica as regras do divórcio. Antes de
levantar um problema que julgo substantivo sobre a
lei em causa, uma declaração de interesses e dois
pontos prévios.
A declaração de interesses serve para esclarecer que
me casei novo, com 18 anos, e em breve assinalarei o
33.º aniversário da passagem pela Conservatória do
Registo Civil. Sendo essa a minha experiência de
vida pessoal, não deixei de acompanhar muitos casos
de rupturas civilizadas ou incivilizadas de
múltiplos casamentos.
Dessa minha experiência decorre o primeiro ponto
prévio: uma das piores experiências que tive nos
tribunais portugueses foi num caso de divórcio. À
época exigia-se cinco anos de separação efectiva
para que se pudesse requerer o divórcio quando um
dos cônjuges queria manter um casamento que já não
existia. No caso que acompanhei a declaração do
divórcio só ocorreu oito anos depois da separação
efectiva - cinco de espera para interpor a acção,
mais três para o tribunal decidir. Entretanto o
prazo diminuiu para três anos e, conhecendo a
tramitação normal dos processos nos nossos
tribunais, reduzi-lo para apenas um, como agora foi
aprovado, parece-me sensato e adaptado ao país e à
sociedade que somos.
O segundo ponto prévio vai em sentido contrário: a
lei que ontem foi aprovada passa a considerar crime
o seguinte tipo de comportamento de um dos pais
divorciados: "De um modo repetido e injustificado,
não cumprir o regime estabelecido para a convivência
do menor [o filho ou os filhos] na regulação do
exercício das responsabilidades parentais, ao
recusar, atrasar ou dificultar significativamente a
sua entrega ou acolhimento." Compreende-se a
preocupação com comportamentos que, na prática,
retiram a um dos pais direitos de convivência com os
seus filhos, comportamentos infelizmente muito
frequentes. Já se compreende pior a moldura penal
prevista para este novo crime: "Pena de prisão até
dois anos ou com pena de multa até 240 dias."
Porquê? Porque uma rápida consulta ao nosso Código
Penal permite verificar que essa é a mesma moldura
penal prevista para quem, abusando da sua
inexperiência, pratique actos sexuais com
adolescentes; para quem, abusando de uma posição de
autoridade, constranger alguém a praticar um acto
sexual "de relevo"; para quem furtar veículos; para
quem participar numa rixa de que resulte morte; ou
ainda para quem cometer o crime de "subtracção de
menor", entre muitos outros crimes que seria
fastidioso citar. Interrogo-me se existe na
sociedade portuguesa o consenso de que o novo crime
tem a mesma gravidade dos que citei, ou se a
criminalização de relações tumultuosas entre casais
divorciados não corresponde apenas a mais um triunfo
da judicialização da vida colectiva e um prestar
vassalagem ao que parece, hoje e aqui, ser
"politicamente correcto".
Recorri a este preâmbulo para fugir da armadilha que
rodeou a discussão desta lei: a de que qualquer
eventual divergência sobre as fórmulas encontradas
não resultaria de uma análise fria, sensata,
ponderada, da realidade tal como a conhecemos, antes
de uma visão ideológica diferente do casamento e da
família.
Claro que existem, nesta matéria, visões ideológicas
diferentes, que se devem confrontar sem receio de se
partir a louça. E ninguém, nem mesmo o editorialista,
pode alegar não ter uma ideia sobre que valores
devem presidir ao casamento e à sua dissolução.
Porém é possível - ou teria sido possível - ter uma
discussão que não fosse tão marcada pelo verdadeiro
manifesto ideológico que integra a "exposição de
motivos" do Projecto de Lei n.º 509/10 apresentado
pelo PS e que foi a matriz das alterações ontem
reaprovadas com uma ligeiríssima clarificação num
dos seus artigos.
Acontece porém que, numa democracia, para além das
ideologias e dos programas políticos, há regras do
jogo que devem ser cumpridas e que, pior ou melhor,
são fixadas pela Constituição da República. Ora ao
ler atentamente a nova lei há pelo menos um ponto em
que esta me parece violar direitos fundamentais
previstos na Constituição, em concreto o direito ao
livre estabelecimento de contratos e o direito de
não ver o Estado intervir, de forma retroactiva, na
validade desses contratos.
Refiro-me ao facto de o Código Civil prever três
fórmulas para os contratos de casamento: a comunhão
de adquiridos, a comunhão geral de bens e a
separação geral de bens. Ao escolherem um desses
regimes - cuja existência se justifica por motivos
que ultrapassam um eventual divórcio -, as partes
agem de forma livre e consciente.
Ora sucede que, com a nova lei, na prática se
consideram nulos, para efeito de divórcio, todos os
contratos livremente firmados, aplicando a todos os
casos a regra única da comunhão de adquiridos. Mais:
da lei não resulta que isso é feito em benefício da
parte mais fraca economicamente, podendo mesmo
suceder o contrário.
Como defensor dos princípios da liberdade e da
responsabilidade individuais, ambos protegidos pela
Constituição, duvido que uma lei que interfere de
forma retroactiva nos efeitos de contratos
celebrados livremente não seja uma lei
inconstitucional. É por isso que nem sequer entro
por outros pontos da lei que a minha experiência de
vida me mostrou bem distantes da realidade do que se
passa quando há litígio nos divórcios.
Acredito pois que voltaremos em breve a discutir uma
lei cuja formulação foi demasiado condicionada pela
agenda política e pela preocupação do PS de segurar
votos à esquerda, mas onde pouco se atendeu ao bom
senso.