Público  - 18 Set 08

 

E se a lei do divórcio violar direitos previstos na Constituição?
José Manuel Fernandes

 

Está em causa saber se uma lei pode declarar, com efeitos retroactivos, que um regime livremente estabelecido num contrato de casamento deixa de ser válido para os casos de divórcio ou se isso viola direitos constitucionais

 

A Assembleia aprovou ontem, com alterações mínimas, uma lei que modifica as regras do divórcio. Antes de levantar um problema que julgo substantivo sobre a lei em causa, uma declaração de interesses e dois pontos prévios.

 

A declaração de interesses serve para esclarecer que me casei novo, com 18 anos, e em breve assinalarei o 33.º aniversário da passagem pela Conservatória do Registo Civil. Sendo essa a minha experiência de vida pessoal, não deixei de acompanhar muitos casos de rupturas civilizadas ou incivilizadas de múltiplos casamentos.

 

Dessa minha experiência decorre o primeiro ponto prévio: uma das piores experiências que tive nos tribunais portugueses foi num caso de divórcio. À época exigia-se cinco anos de separação efectiva para que se pudesse requerer o divórcio quando um dos cônjuges queria manter um casamento que já não existia. No caso que acompanhei a declaração do divórcio só ocorreu oito anos depois da separação efectiva - cinco de espera para interpor a acção, mais três para o tribunal decidir. Entretanto o prazo diminuiu para três anos e, conhecendo a tramitação normal dos processos nos nossos tribunais, reduzi-lo para apenas um, como agora foi aprovado, parece-me sensato e adaptado ao país e à sociedade que somos.

 

O segundo ponto prévio vai em sentido contrário: a lei que ontem foi aprovada passa a considerar crime o seguinte tipo de comportamento de um dos pais divorciados: "De um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor [o filho ou os filhos] na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento." Compreende-se a preocupação com comportamentos que, na prática, retiram a um dos pais direitos de convivência com os seus filhos, comportamentos infelizmente muito frequentes. Já se compreende pior a moldura penal prevista para este novo crime: "Pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias." Porquê? Porque uma rápida consulta ao nosso Código Penal permite verificar que essa é a mesma moldura penal prevista para quem, abusando da sua inexperiência, pratique actos sexuais com adolescentes; para quem, abusando de uma posição de autoridade, constranger alguém a praticar um acto sexual "de relevo"; para quem furtar veículos; para quem participar numa rixa de que resulte morte; ou ainda para quem cometer o crime de "subtracção de menor", entre muitos outros crimes que seria fastidioso citar. Interrogo-me se existe na sociedade portuguesa o consenso de que o novo crime tem a mesma gravidade dos que citei, ou se a criminalização de relações tumultuosas entre casais divorciados não corresponde apenas a mais um triunfo da judicialização da vida colectiva e um prestar vassalagem ao que parece, hoje e aqui, ser "politicamente correcto".

 

Recorri a este preâmbulo para fugir da armadilha que rodeou a discussão desta lei: a de que qualquer eventual divergência sobre as fórmulas encontradas não resultaria de uma análise fria, sensata, ponderada, da realidade tal como a conhecemos, antes de uma visão ideológica diferente do casamento e da família.

 

Claro que existem, nesta matéria, visões ideológicas diferentes, que se devem confrontar sem receio de se partir a louça. E ninguém, nem mesmo o editorialista, pode alegar não ter uma ideia sobre que valores devem presidir ao casamento e à sua dissolução. Porém é possível - ou teria sido possível - ter uma discussão que não fosse tão marcada pelo verdadeiro manifesto ideológico que integra a "exposição de motivos" do Projecto de Lei n.º 509/10 apresentado pelo PS e que foi a matriz das alterações ontem reaprovadas com uma ligeiríssima clarificação num dos seus artigos.

 

Acontece porém que, numa democracia, para além das ideologias e dos programas políticos, há regras do jogo que devem ser cumpridas e que, pior ou melhor, são fixadas pela Constituição da República. Ora ao ler atentamente a nova lei há pelo menos um ponto em que esta me parece violar direitos fundamentais previstos na Constituição, em concreto o direito ao livre estabelecimento de contratos e o direito de não ver o Estado intervir, de forma retroactiva, na validade desses contratos.

 

Refiro-me ao facto de o Código Civil prever três fórmulas para os contratos de casamento: a comunhão de adquiridos, a comunhão geral de bens e a separação geral de bens. Ao escolherem um desses regimes - cuja existência se justifica por motivos que ultrapassam um eventual divórcio -, as partes agem de forma livre e consciente.

 

Ora sucede que, com a nova lei, na prática se consideram nulos, para efeito de divórcio, todos os contratos livremente firmados, aplicando a todos os casos a regra única da comunhão de adquiridos. Mais: da lei não resulta que isso é feito em benefício da parte mais fraca economicamente, podendo mesmo suceder o contrário.

 

Como defensor dos princípios da liberdade e da responsabilidade individuais, ambos protegidos pela Constituição, duvido que uma lei que interfere de forma retroactiva nos efeitos de contratos celebrados livremente não seja uma lei inconstitucional. É por isso que nem sequer entro por outros pontos da lei que a minha experiência de vida me mostrou bem distantes da realidade do que se passa quando há litígio nos divórcios.

 

Acredito pois que voltaremos em breve a discutir uma lei cuja formulação foi demasiado condicionada pela agenda política e pela preocupação do PS de segurar votos à esquerda, mas onde pouco se atendeu ao bom senso.