Público  - 16 Set 08

 

Pai 93-A ou a quimera do livro escolar
Miguel Gaspar

 

E o leitor amigo? Até onde está disposto a ir pela da educação dos seus filhos? Até onde for preciso? Eu logo vi que era cá dos meus! Pois então siga-me no relato da provação que pode ser adquirir um livro escolar. O negócio do manual escolar, o leitor sabe, é o ponto do Universo onde o pior do socialismo encontra o pior do capitalismo. Enquanto compradores, não temos liberdade de escolha. Enquanto isso, os editores têm liberdade para fazer o que muito bem entenderem.

 

Então na semana passada, fiz-me ao caminho até chegar à loja da Texto em Benfica, "ali ao pé do Fonte Nova", como me explicaram num balcão da concorrência. Cheguei e parecia que tinha entrado numa estação de metro. Gente e mais gente, tudo de pé, ocupando a livraria inteira. Assim um espaço estreito e sobre o comprido, uma escada no meio ligando o rés-do-chão e a cave - "Texto em baixo, Asa em cima", ouvia o funcionário dizer - e bem vistas as coisas até fazia sentido, seria ilógico a asa ficar no andar de baixo. Toda a livraria estava à altura desta lógica. Entrei - "Tire a senha, por favor" -, perguntei - "Se é Texto é lá em baixo, vá ter com o meu colega" -, encontrei um dos dois livros que procurava. O outro, explicaram-me, ainda não tinha chegado. Minutos depois já subia os degraus da escada, manual escolar e senha 93 na mão. O marcador ia no 87. Sorri. Mas a lição ia começar.

 

Do balcão chamaram o 93, aproximei-me. "Mas o senhor é o A!", disse o funcionário. "Ah", disse eu. "E vai no E", continuou ele. "Ai é?, perguntei. "Vai até ao Z?" "Não, acaba no E", sossegou-me ele. "Só faltam cem números." Olhei em volta e gelei. Aquela gente toda, alunos, professores, pais, estava à minha frente. Eram todos "A", tal qual eu. Suavam muito, protestavam pouco, resignavam-se bastante. Estavam em pé ao longo dos dois corredores entre a parede a escada. Ao fundo, haveria no máximo oito lugares sentados. Era assim no andar da Asa e na cave da Texto. Havia três caixas abertas para aquela gente toda - "Lá em baixo, só com multibanco" - e aquela gente toda eram pelo menos cem pessoas. E continuavam a entrar clientes, tropeçando nos que esperavam, procurando nas estantes e consultando listas das escolas. Por esta altura, a coisa já ia no B. A dança das senhas prosseguia. Em pé entre as duas empregadas das caixas, um homem vestido de vermelho ia chamando os números. "Sete, oito, nove." E a confusão continuava. "O senhor é o nove- B", dizia. "Nove-B?", perguntava o pobre. "Sim, agora vai no A." E lá voltava o nove-B para o corredor, suando e carregando um montão de livros. A contagem continuava, sempre interrompida pela mesma conversa. "A senhora é o 17B." Assim continuou até ao 93. 93-A, o meu. Uma hora e 15 minutos depois - e só com um dos dois livros de que precisava. Para os outros, a espera continuava. Ouvia perguntar: "Mas o que está aqui esta gente toda a fazer?" "Parece que os livros não chegaram tempo", respondeu alguém. Fossem quais fossem os motivos, ali estavam professores, pais e alunos sem outro remédio que não esperarem pela sua vez, num espaço exíguo e sem quaisquer condições. Meti-me no carro e, no caminho para casa, passei em frente ao Ministério da Educação. Pensei em ir apresentar queixa à ministra. Mas se fosse recebido ela logo me apresentaria uma estatística provando que eu estava errado. E para estatística já me bastava ter sido durante 75 minutos o pai 93-A.