Pai 93-A ou a quimera do livro escolar Miguel Gaspar
E o leitor amigo? Até onde está disposto a ir pela
da educação dos seus filhos? Até onde for preciso?
Eu logo vi que era cá dos meus! Pois então siga-me
no relato da provação que pode ser adquirir um livro
escolar. O negócio do manual escolar, o leitor sabe,
é o ponto do Universo onde o pior do socialismo
encontra o pior do capitalismo. Enquanto
compradores, não temos liberdade de escolha.
Enquanto isso, os editores têm liberdade para fazer
o que muito bem entenderem.
Então na semana passada, fiz-me ao caminho até
chegar à loja da Texto em Benfica, "ali ao pé do
Fonte Nova", como me explicaram num balcão da
concorrência. Cheguei e parecia que tinha entrado
numa estação de metro. Gente e mais gente, tudo de
pé, ocupando a livraria inteira. Assim um espaço
estreito e sobre o comprido, uma escada no meio
ligando o rés-do-chão e a cave - "Texto em baixo,
Asa em cima", ouvia o funcionário dizer - e bem
vistas as coisas até fazia sentido, seria ilógico a
asa ficar no andar de baixo. Toda a livraria estava
à altura desta lógica. Entrei - "Tire a senha, por
favor" -, perguntei - "Se é Texto é lá em baixo, vá
ter com o meu colega" -, encontrei um dos dois
livros que procurava. O outro, explicaram-me, ainda
não tinha chegado. Minutos depois já subia os
degraus da escada, manual escolar e senha 93 na mão.
O marcador ia no 87. Sorri. Mas a lição ia começar.
Do balcão chamaram o 93, aproximei-me. "Mas o senhor
é o A!", disse o funcionário. "Ah", disse eu. "E vai
no E", continuou ele. "Ai é?, perguntei. "Vai até ao
Z?" "Não, acaba no E", sossegou-me ele. "Só faltam
cem números." Olhei em volta e gelei. Aquela gente
toda, alunos, professores, pais, estava à minha
frente. Eram todos "A", tal qual eu. Suavam muito,
protestavam pouco, resignavam-se bastante. Estavam
em pé ao longo dos dois corredores entre a parede a
escada. Ao fundo, haveria no máximo oito lugares
sentados. Era assim no andar da Asa e na cave da
Texto. Havia três caixas abertas para aquela gente
toda - "Lá em baixo, só com multibanco" - e aquela
gente toda eram pelo menos cem pessoas. E
continuavam a entrar clientes, tropeçando nos que
esperavam, procurando nas estantes e consultando
listas das escolas. Por esta altura, a coisa já ia
no B. A dança das senhas prosseguia. Em pé entre as
duas empregadas das caixas, um homem vestido de
vermelho ia chamando os números. "Sete, oito, nove."
E a confusão continuava. "O senhor é o nove- B",
dizia. "Nove-B?", perguntava o pobre. "Sim, agora
vai no A." E lá voltava o nove-B para o corredor,
suando e carregando um montão de livros. A contagem
continuava, sempre interrompida pela mesma conversa.
"A senhora é o 17B." Assim continuou até ao 93.
93-A, o meu. Uma hora e 15 minutos depois - e só com
um dos dois livros de que precisava. Para os outros,
a espera continuava. Ouvia perguntar: "Mas o que
está aqui esta gente toda a fazer?" "Parece que os
livros não chegaram tempo", respondeu alguém. Fossem
quais fossem os motivos, ali estavam professores,
pais e alunos sem outro remédio que não esperarem
pela sua vez, num espaço exíguo e sem quaisquer
condições. Meti-me no carro e, no caminho para casa,
passei em frente ao Ministério da Educação. Pensei
em ir apresentar queixa à ministra. Mas se fosse
recebido ela logo me apresentaria uma estatística
provando que eu estava errado. E para estatística já
me bastava ter sido durante 75 minutos o pai 93-A.