Público  - 15 Set 08

 

Mudar de vida
Francisco Sarsfield Cabral

 

É indispensável maior racionalidade nos gastos, pensando no futuro

 

Mais de dois terços dos portugueses têm dificuldade em pagar as contas no fim do mês - pior, na UE, só a Bulgária. O rendimento disponível de muitas famílias baixa com o fraco crescimento da economia e dos salários, a alta dos preços, os impostos, o desemprego e sobretudo o endividamento - que subiu, em parte, para manter certos níveis de consumo, apesar da quebra dos rendimentos familiares.

 

O nosso endividamento médio equivale hoje a 130% do rendimento familiar disponível (20% em 1990), valor apenas superado na UE pela Holanda. Mas os holandeses têm sobretudo créditos a taxa fixa, enquanto quase todos os nossos são a taxa variável, aumentando os encargos com a subida dos juros.

 

Assim, não admira que a taxa de poupança das famílias portuguesas esteja no ponto mais baixo da última década. Até porque, além do aperto financeiro, há outros factores que induzem a poupar menos.

 

Por um lado, com a universalização da previdência, instalou-se na sociedade portuguesa a ideia de que o Estado trata da nossa saúde e da nossa reforma. Desvaneceu-se o antigo instinto de pôr algum dinheiro de lado para os imprevistos da vida, mesmo quando quem assim poupava tinha fracos rendimentos. E muitos ainda não repararam que aquela antiga atitude tem de voltar, pois a situação financeira do Estado e da Segurança Social limitará cada vez mais os apoios. Há mais gente a fazer Planos de Poupança Reforma, mas não chega.

 

Por outro lado, os incentivos à poupança são escassos entre nós. Os certificados de aforro pagam menos desde Janeiro, levando a que no primeiro semestre 25 mil aforradores os abandonassem; 1230 milhões de euros foram levantados, entrando apenas 764 milhões, tendência que se agravou em Julho. As contas poupança-habitação ficaram sem incentivos fiscais. Este ano, os fundos de investimento perderam 23 por cento dos activos. Com a bolsa em derrocada e o imobiliário em crise, restam alguns depósitos a prazo para as poupanças não serem comidas pela inflação. É curto.

 

Numa altura em que a protecção social pública - na saúde, nas pensões, etc. - se torna menos generosa por causa do envelhecimento da população e do fraco crescimento económico, a quebra na poupança das famílias é preocupante. A ilusão de que o Estado tomará conta de nós nas dificuldades poderá sair cara, no desemprego, na doença e na velhice.

 

Hoje, a maioria das famílias portuguesas apenas poderá poupar um pouco mais se cortar no consumo, que já está a abrandar fortemente. Mas só haverá mais poupança se os cortes forem maiores, o que implica alterar padrões de vida. Por outras palavras, muita gente tem de diminuir ainda mais o consumo.

 

Eu sei como é às vezes hipócrita a crítica ao consumismo - os críticos vivem bem, mas não querem o mesmo para os outros, até porque isso os pode prejudicar. Por exemplo, quem possui automóvel há décadas lamenta que tanta gente disponha hoje de carro, engarrafando o trânsito e o estacionamento.

 

Também compreendo que quem tenha um passado, pessoal ou familiar, de pobreza pretenda afastar essa memória, agarrando-se a símbolos de prosperidade e de status social, como o automóvel ou férias no estrangeiro. E as necessidades evoluem com a habituação a novas comodidades - há 30 anos os carros não tinham ar condicionado, hoje raros o dispensam.

 

Mas uma certa moderação no consumo e uma maior preocupação em evitar gastos são indispensáveis. Isso significa, por exemplo, planear com mais cuidado as finanças familiares, não pensando apenas no presente. E perceber a irracionalidade (pesando custos e benefícios) de procurar ter sempre o último e mais sofisticado telemóvel, para uso intensivo de duvidosa utilidade. Ou multiplicar o número de carros por família. Ou, ainda, ir a restaurantes quando tal não é necessário. Estes exemplos correspondem a áreas onde, em média, os gastos dos portugueses são superiores aos de muitos outros europeus, bem mais ricos.

 

A moderação no consumo poderá ser deliberada, permitindo a poupança. Ou será imposta pela realidade económica: a certa altura, o crédito acaba. Daí pode resultar uma tragédia não só pessoal, mas também colectiva, caso se feche a torneira do crédito estrangeiro que alimenta os nossos bancos. Mais vale, então, as pessoas gastarem com maior racionalidade. Ainda que tal implique, em alguma medida, mudar de vida. Jornalista