Diário de Notícias - 04 Set 08

 

As perguntas que não fazemos
Maria José Nogueira Pinto

 

Diz-se que não há factos, só há interpretações. Foi o que senti ao regressar a Portugal quando, ainda no avião, jornais e telejornais descreviam com grande dramatismo as "ondas de criminalidade" que assolavam o País. Feita a interpretação dos factos, estes perdem importância e são ultrapassados por um clima emocional colectivo em que se torna inútil a confrontação de indicadores, nacionais e europeus, sobre a criminalidade. Estabelece-se um profundo sentimento de insegurança, alimentado pelos media que precisam de notícias, e pelos partidos políticos que precisam de assunto.

 

Toda a algazarra feita em torno da vaga de assaltos trouxe ao de cima uma série de lamentáveis contradições: ora a polícia não actua, ora actua com excessos; ora o Governo não faz nada, ora cria de rompante uma medida excepcional (o que será um secretário-geral de Segurança?); ora a prisão preventiva é declarada um abuso vergonhoso (o número excessivo de presos com esta medida, os prazos, as prisões a abarrotar, etc...) ora reaparece como medida salvífica; ora se assume que as polícias podem actuar eficazmente sem unidade de comando ou adequada articulação, ora afinal não podem e aí está o problema; ora as penas são adequadas, ora, vendo bem, desproporcionadas; ora o que é preciso é demitir o ministro, ora é melhor atirar pedras ao sistema judicial. Andamos há anos nesta roda viva, cíclica e sistematicamente, sem nenhuma vergonha. Quantos debates, quantos acordos parlamentares, quantas revisões do código penal e de processo penal ao longo dos últimos anos, afinal para nada...

 

A criminalidade e a insegurança não são uma e a mesma coisa. Nem as melhores leis, os bons governos ou as administrações mais eficazes acabam com a criminalidade, mas podem reduzir ao mínimo a insegurança que ela provoca no cidadão comum. E donde vem, afinal, a nossa maior insegurança colectiva? Vem da escassa fiabilidade daqueles que, sucessivamente, foram detendo o poder de decidir nestas matérias e do visível desnorte que se apodera dos responsáveis políticos, não tanto pelos factos como pela interpretação que lhes é dada. A nossa insegurança real tem sobretudo a ver com más leis, maus governos e mau exercício da Justiça. E isso, infelizmente, não é sazonal.

 

Outra questão é a criminalidade stricto sensu, cujas interpretações são outra contradição pegada. Será que estamos perante fenómenos novos? Valia a pena pensar, por exemplo, na inevitável internacionalização das actividades criminosas, facilitada por uma política irresponsável de portas escancaradas e um clima geral de impunidade. Mas é igualmente grave o facto de se ter, irreflectidamente, procedido ao acantonamento em bairros urbanos e suburbanos de um nó górdio de problemas sociais, culturais e étnicos. Como é desastrosa e imoral a opção política de distribuir subsídios, sob a forma de rendimento de inserção, fomentando, em muitos casos, a marginalidade como um modo de vida possível. Que Governo se vangloria, além do nosso, com o crescimento dessa clientela, sem ser obrigado a prestar contas, a explicar critérios, a clarificar objectivos, a apresentar resultados? Outra vergonha...

 

Finalmente, a questão do aumento da violência num país de brandos costumes. Violência no interior da pequena comunidade, no interior das casas e das famílias. Violência sobre mulheres, sobre crianças, sobre velhos. O primado do abandono, da negligência, das dependências indignas. Estes números que crescem têm cara e nome de vítima e estes fenómenos têm causas evidentes numa sociedade que se foi tornando inimputável, despida de responsabilidades, alheia à culpa, submersa num relativismo moral descarnado.

 

Ninguém quer ouvir falar das causas. Passados tantos anos, todos nós estivemos nas causas e é mais fácil ignorá-las quando a luz crua dos focos mediáticos aconselha a fuga para a frente na versão que mais convenha no momento. Também por isso ninguém dá as respostas certas. E como não há respostas, para quê fazer perguntas?