As perguntas que não fazemos Maria José Nogueira Pinto
Diz-se que não há factos, só há interpretações. Foi
o que senti ao regressar a Portugal quando, ainda no
avião, jornais e telejornais descreviam com grande
dramatismo as "ondas de criminalidade" que assolavam
o País. Feita a interpretação dos factos, estes
perdem importância e são ultrapassados por um clima
emocional colectivo em que se torna inútil a
confrontação de indicadores, nacionais e europeus,
sobre a criminalidade. Estabelece-se um profundo
sentimento de insegurança, alimentado pelos media
que precisam de notícias, e pelos partidos políticos
que precisam de assunto.
Toda a algazarra feita em torno da vaga de assaltos
trouxe ao de cima uma série de lamentáveis
contradições: ora a polícia não actua, ora actua com
excessos; ora o Governo não faz nada, ora cria de
rompante uma medida excepcional (o que será um
secretário-geral de Segurança?); ora a prisão
preventiva é declarada um abuso vergonhoso (o número
excessivo de presos com esta medida, os prazos, as
prisões a abarrotar, etc...) ora reaparece como
medida salvífica; ora se assume que as polícias
podem actuar eficazmente sem unidade de comando ou
adequada articulação, ora afinal não podem e aí está
o problema; ora as penas são adequadas, ora, vendo
bem, desproporcionadas; ora o que é preciso é
demitir o ministro, ora é melhor atirar pedras ao
sistema judicial. Andamos há anos nesta roda viva,
cíclica e sistematicamente, sem nenhuma vergonha.
Quantos debates, quantos acordos parlamentares,
quantas revisões do código penal e de processo penal
ao longo dos últimos anos, afinal para nada...
A criminalidade e a insegurança não são uma e a
mesma coisa. Nem as melhores leis, os bons governos
ou as administrações mais eficazes acabam com a
criminalidade, mas podem reduzir ao mínimo a
insegurança que ela provoca no cidadão comum. E
donde vem, afinal, a nossa maior insegurança
colectiva? Vem da escassa fiabilidade daqueles que,
sucessivamente, foram detendo o poder de decidir
nestas matérias e do visível desnorte que se apodera
dos responsáveis políticos, não tanto pelos factos
como pela interpretação que lhes é dada. A nossa
insegurança real tem sobretudo a ver com más leis,
maus governos e mau exercício da Justiça. E isso,
infelizmente, não é sazonal.
Outra questão é a criminalidade stricto sensu, cujas
interpretações são outra contradição pegada. Será
que estamos perante fenómenos novos? Valia a pena
pensar, por exemplo, na inevitável
internacionalização das actividades criminosas,
facilitada por uma política irresponsável de portas
escancaradas e um clima geral de impunidade. Mas é
igualmente grave o facto de se ter,
irreflectidamente, procedido ao acantonamento em
bairros urbanos e suburbanos de um nó górdio de
problemas sociais, culturais e étnicos. Como é
desastrosa e imoral a opção política de distribuir
subsídios, sob a forma de rendimento de inserção,
fomentando, em muitos casos, a marginalidade como um
modo de vida possível. Que Governo se vangloria,
além do nosso, com o crescimento dessa clientela,
sem ser obrigado a prestar contas, a explicar
critérios, a clarificar objectivos, a apresentar
resultados? Outra vergonha...
Finalmente, a questão do aumento da violência num
país de brandos costumes. Violência no interior da
pequena comunidade, no interior das casas e das
famílias. Violência sobre mulheres, sobre crianças,
sobre velhos. O primado do abandono, da negligência,
das dependências indignas. Estes números que crescem
têm cara e nome de vítima e estes fenómenos têm
causas evidentes numa sociedade que se foi tornando
inimputável, despida de responsabilidades, alheia à
culpa, submersa num relativismo moral descarnado.
Ninguém quer ouvir falar das causas. Passados tantos
anos, todos nós estivemos nas causas e é mais fácil
ignorá-las quando a luz crua dos focos mediáticos
aconselha a fuga para a frente na versão que mais
convenha no momento. Também por isso ninguém dá as
respostas certas. E como não há respostas, para quê
fazer perguntas?