'Não abstrair por completo da realidade' João César das Neves
O Presidente da República devolveu à Assembleia sem
promulgação o Decreto n.º 232/X, que aprova o Regime
Jurídico do Divórcio. Os argumentos invocados são
semelhantes aos que múltiplos juristas, sociólogos e
especialistas em temas familiares têm vindo a
apresentar nos últimos meses. Mas o Presidente
acrescentou uma consideração interessante: "Importa,
todavia, não abstrair por completo da consideração
da realidade da vida matrimonial no Portugal
contemporâneo" (Mensagem do Presidente à Assembleia
da República n.º 3).
O problema desta lei é de facto que, embebida em
princípios ideológicos e generalizações retóricas,
abstrai "por completo" da consideração da realidade
contemporânea. A Assembleia proclama ideais, invoca
mandamentos, ralha com a sociedade. Só esquece a
situação concreta. Como acontece por cá em tantos
temas, raramente tão decisivos, temos leis elegantes
mas irrealistas.
A finalidade das leis é proteger os fracos. Mas, ao
eliminar a possibilidade do divórcio culposo, a
Assembleia deixa as vítimas à mercê dos violadores.
O Presidente dá-se ao trabalho de explicar em
detalhe aos deputados: "Por exemplo, numa situação
de violência doméstica, em que o marido agride a
mulher ao longo dos anos - uma realidade que não é
rara em Portugal -, é possível aquele obter o
divórcio independentemente da vontade da vítima de
maus tratos. Mais ainda, (...) o marido, apesar de
ter praticado reiteradamente actos de violência
conjugal, pode exigir do outro o pagamento de
montantes financeiros" (n.º 6). "Noutro plano, são
retiradas à parte mais frágil ou alvo da violação
dos deveres conjugais algumas possibilidades que
actualmente detém para salvaguardar o seu "poder
negocial", designadamente a alegação da culpa do
outro cônjuge ou a recusa no divórcio por mútuo
consentimento" (n.º 7). Dificilmente se pode ser
mais claro.
A finalidade das leis é defender a liberdade. Porém,
o novo regime impõe-se à livre escolha dos esposos:
"A circunstância de, mesmo contra a vontade
manifestada por ambos os nubentes no momento do
casamento, se impor agora na partilha um regime
diverso daquele que foi escolhido (a saber, o da
comunhão geral de bens), consubstancia, por assim
dizer, uma 'revogação retroactiva' de uma opção
livre" (n.º 12). As críticas são bastante mais e
bastante graves, incluindo a "visão 'contabilística'
do matrimónio" subjacente à lei (n.º 10) ou o
"aumento dos focos de conflito que o legislador
proporcionou" (n.º 11). A mensagem merece ser lida
em pormenor.
Perante argumentos tão evidentes, o aspecto mais
interessante da discussão é tentar compreender como
se pode criar um tal monstro legislativo. Como caem
os eminentes deputados da Nação em tais dislates? As
reacções ao veto presidencial dão uma pista para o
mistério, quando o classificaram de "conservador" e
"retrógrado".
Os maiores desastres do século XX foram gerados por
pessoas e grupos autonomeados progressistas e donos
do futuro. Quando alguém, iluminado pelas forças da
modernidade, despreza a realidade que o rodeia como
obsoleta e tacanha, impõe sem contemplações as suas
opiniões. Então surge o horror. Não é preciso ir
longe para encontrar exemplos devastadores deste
erro.
Há cem anos, a 3 de Novembro de 1910, Afonso Costa,
recém-nomeado ministro da Justiça da jovem República
Portuguesa, apresentou a primeira Lei do Divórcio,
completada por outras a 25 de Dezembro (que não era
Natal, mas "Festa da Família Portuguesa" por decreto
da presidência do Governo Provisório de 12 de
Outubro). Na altura governava uma pequena elite
urbana que se sentia dona do futuro e impunha as
suas teorias à massa ignara. O resultado dessa
governação foi a maior catástrofe social e económica
do Portugal moderno.
Hoje, um grupo de deputados, muitos herdeiros da
mesma doutrina, aprova nova Lei do Divórcio, numa
Assembleia dominada por um moralismo erótico e
laxista, tão sufocante como o oposto. "Importa,
todavia, não abstrair por completo da consideração
da realidade da vida matrimonial no Portugal
contemporâneo."