Diário de Noticias - 30 Set 07

Dias contados
Alberto Gonçalves

Domingo, 23 de Setembro
'MÃE? LIGUEI SÓ PARA DIZER QUE ESTE MÊS NÃO NOS DÁ JEITO IR AÍ. BEIJINHOS'

Aqui há uns anos, distribuir torradeiras, frigoríficos e microondas pelas massas era desfaçatez digna do pior populismo. Hoje, dar telemóveis a velhinhos, como faz o Governo Civil de Braga com o apoio do ministro Vieira da Silva, é uma iniciativa de enorme alcance social. É possível que dos vulgares electrodomésticos de cozinha às conquistas das tecnologias de comunicação haja uma qualquer distância ética que me escapa. O Governo também espalha computadores pelo povo e poucos criticam convictamente o gesto.

Ou então foram os tempos que mudaram, e entretanto tornou-se louvável comprar a simpatia popular mediante a oferta de entulho diverso. Se é disto que se trata, e dependendo do entulho, o princípio não me parece mau. Há muito que os cidadãos desistiram de aguardar contrapartidas pelo seu empenho cívico e lisura. As pessoas votam, elegem representantes, pagam os salários dos representantes, pagam a mando dos representantes impostos directos, indirectos e acumulados, descontam para o que calha e recebem de volta reformas pífias, serviços estatais anedóticos, "desígnios nacionais", um chafariz na praça e indiferença.

Um telemóvel, pelo menos, é um bem palpável, bastante preferível ao chafariz ou a três horas de espera no centro de saúde. No caso dos "idosos isolados" de Braga, para recorrer aos termos do governador civil, o telemóvel é uma autêntica bênção, que poupa aos familiares a maçada da deslocação a casa dos velhinhos, agravando o isolamento destes mas aumentando imenso a qualidade de vida daqueles. As grandes rupturas políticas nunca são consensuais: o major Valentim, esse precursor, que o diga.

Segunda, 24 de Setembro

TROCA DE BALAS

Para combater o sono induzido pela lengalenga oficial sobre a matéria, vale a pena seguir a (adiada) troca de seringas nas prisões com um livro à mão. O livro chama-se Junk Medicine: Doctors, Lies and the Addiction Bureaucracy. O autor é Theodore Dalrymple, pseudónimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels, colunista da revista Spectator e médico (reformado) de uma prisão em Birmingham.

A tese de Dalrymple é simples: a convenção de que o uso de narcóticos é uma doença serve apenas para desresponsabilizar os sujeitos que os consomem e empregar os sujeitos que, alegadamente, tratam o problema. Na longa experiência de Dalrymple, nem o drogado é um doente nem as drogas ditas duras fomentam uma dependência impossível de interromper sem ajuda externa. O "vício" é, acima de tudo, deliberado: é iniciado de livre vontade (ao invés da pneumonia) e pode ser abandonado de livre vontade (ao invés da pneumonia), com desconforto mas longe do tormento físico popularmente difundido. Dalrymple não nega as consequências clínicas do hábito (hepatite, Sida, tuberculose), nega que as consequências façam do hábito uma doença (o montanhismo não é uma doença embora os montanhistas sofram queimaduras do frio). E garante que prevenir os efeitos de um acto deliberado é estimular a repetição do acto. Ou seja: nada de seringas ou injecção "assistida".

Se por milagre o lessem, "Junk Medicine" seria uma fonte de irritação permanente para hordas de médicos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais e funcionários afins. Para mim, foi um prazer, excitante até na discórdia. Para mencionar um pormenor, a ideia (ideia de Dalrymple) de que, em vez de predispor ao crime, a droga é reflexo de uma espécie de "vocação criminosa", logo punível, não me convenceu inteiramente. Não acho que cidadãos maiores e vacinados (aliás frequentemente, e com diversas substâncias) devam ser detidos à conta dos extremos testes a que submetem as entranhas. Porém, é polémico que se gastem fortunas a salvá-los deles próprios. Polémico e ocasionalmente ridículo: no que respeita às seringas nas prisões, o Estado estará, no limite, a fornecer ao heroinómano os meios para que continue a cometer o crime pelo qual foi condenado. Rezo para que o paternalismo não alargue o método aos homicidas.

Terça, 25 de Setembro

UM PORTUGUÊS EM NOVA IORQUE

A fim de legitimar a sua ecológica intervenção nas Nações Unidas, o eng. Sócrates lembrou à Assembleia Geral que "os cientistas já falaram" sobre as emissões de CO2 e as terríveis consequências das alterações climáticas. Os cientistas, de facto, são uns tagarelas. O problema é não dizerem coisa com coisa. Há os que juram a influência do Homem no aquecimento global, os que afirmam a irrelevância do Homem no aquecimento global, os que garantem a inexistência do aquecimento global, os que provam a trivialidade do aquecimento global, os que prevêem o fim do mundo para meados de Novembro, os que prevêem o arrefecimento da Terra, os que se riem das previsões e os que criticam as opções de Camacho para a ala direita do Benfica.

À semelhança do que faz o estadista contemporâneo médio, o eng. Sócrates liga somente às vozes catastrofistas. Compreende-se, já que as restantes não favorecem oratórias grandiloquentes, com exortações da vontade colectiva e genérica pose de senhor da Europa. Infelizmente para o primeiro-ministro, nem assim alguém prestou atenção aos importantíssimos lugares comuns que debitou na ONU: em Nova Iorque e no mundo, os espectadores limitaram-se a acompanhar com um sorriso a sua peculiar competência da língua inglesa.

Não é uma atitude bonita. É evidente que, por comparação, o eng. Sócrates faz Mourinho parecer a rainha Isabel II. Aliás, são públicas as dificuldades que o governante sentiu na disciplina em causa, concluída em horário pós-laboral e à distância. E depois? Principalmente em Portugal, há um orgulho provinciano na alegada vocação do indígena para o domínio do inglês, que nos leva a gozar com o sotaque dos espanhóis mas não nos leva a ler Swift ou Twain no original. No máximo, ajuda-nos a indicar direcções a turistas, tarefa que provavelmente não compete ao chefe do Governo.

Ignoradas as más-línguas, o eng. Sócrates mostrou enorme coragem, e uma saudável sobranceria, ao exibir na sede da ONU o seu abundante desprezo por linguajares estrangeiros. A atitude acabou por ser uma subtil afirmação patriótica, cuja única maçada foi, repito, o conteúdo do discurso não ter sido percebido ou, o que é pior, ter sido percebido ao contrário. Quando, por exemplo, o eng. Sócrates exigiu às autoridades da Birmânia que respeitassem os direitos humanos, as autoridades da Birmânia desataram imediatamente a matar manifestantes. E as emissões de CO2 ainda não baixaram, o que decerto sucederia abruptamente caso o eng. Sócrates usasse o português e confiasse na tradução. Mas mais CO2, menos birmanês, valeu a pena.

Quarta, 26 de Setembro

VIVA SANTANA!

Ao serão, Santana Lopes fala nos estúdios da Sic Notícias acerca das eleições no PSD. A jornalista de plantão, Ana Lourenço, desculpa-se, corta a palavra a Santana e passa a emissão para a chegada de José Mourinho à Portela. Levamos com filmagens turbulentas, vultos, Mourinho num carro, o carro em fuga e um pobre repórter a pronunciar as insanidades do costume. Regressamos a Santana. Ou não: Santana não gosta da troca e, após legítimos queixumes, termina a entrevista ali. Mais tarde, no Jornal da Meia-Noite, um moço da casa acusa-o, à traição, de abandonar a meio tudo aquilo em se mete. Mais tarde ainda, Ricardo Costa justifica a trapalhada com opções editoriais e com os "alinhamentos em aberto".

A estação é deles. Mas os ingénuos que tomavam a Sic Notícias como um modelo de rigor informativo aprenderam que interromper um ex-primeiro-ministro (ou qualquer criatura, vá lá) para transmitir as escalas aéreas do célebre treinador é, no contexto, uma opção editorial válida. Espera-se que Mourinho não decida apanhar um "charter" para as Seychelles durante a cobertura de um atentado terrorista, sob pena de "abrir" irremediavelmente o "alinhamento".

O engraçado é que, num ápice, Santana blasfemou contra as supremas divindades nacionais: a televisão e o futebol. E os portugueses, em geral atentos e venerandos face a ambas, correram para os blogues e os fóruns "on line" a exaltar Santana, que fez uma carreira à custa das câmaras e da bola, e que acabou a noite como um herói de facto improvável e muito português. À saída, o herói proclamou duas coisas: a) o país está doido; b) o país tem de aprender. A primeira é uma evidência, a segunda uma ilusão.

Quinta, 27 de Setembro

REALIZAR PESSOAS

A maior vantagem de não se ter filhos é viver ao largo das reformas educativas. A desvantagem é que cada contacto com esse excêntrico universo é uma infalível surpresa e um intenso choque. Através dos jornais, para citar um exemplo, fui informado de que 21% das escolas nacionais ainda não leccionam educação sexual. É grave: aparentemente, 79% das escolas já leccionam educação sexual.

Isto significa que uma larguíssima percentagem das crianças nativas é diariamente exposta a áreas do conhecimento tão vitais quanto Violência e Saúde Mental, Doenças Sexualmente Transmissíveis e Alimentação. Estas maravilhas são o produto de um Grupo de Trabalho coordenado pelo dr. Daniel Sampaio. Pelos vistos a sra. ministra da Educação entendeu que os fantasmas íntimos do famoso psiquiatra deviam assombrar meninos e meninas inocentes. Com que fim? Um recente relatório do Grupo esclarece: "é essencial que a escola ajude os seus alunos a desenvolverem um conjunto de qualidades que lhes permitam encontrar uma conduta sexual que contribua para a sua realização como pessoas."

Não verdade, não esclarece por aí além, a não ser que a aprendizagem de português de gente não é essencial para as crianças alcançarem, no futuro, um emprego na coordenação de projectos ministeriais. No mais, expostas ao dr. Sampaio, Formação Cívica, Área Projecto e endoutrinamentos afins, o futuro delas afigura-se negro. Não admira que o ensino seja obrigatório: se eu tivesse filhos, só os matricularia em tamanha alucinação sob ameaça de arma.

Sexta, 28 de Setembro

UMA EFEMÉRIDE DISCRETA

No final de Setembro de 1957, West Side Story, a história de Romeu e Julieta entre gangues de Manhattan, estreou na Broadway com um sucesso que a posteridade exagerou. Condicionantes cronológicas impediram-me de assistir à obra, salvo em pedacinhos degradados e a preto e branco. Por vingança, vejo o filme quase todos os meses e ouço o disco todas as semanas. O filme, abençoado com um camião de óscares, é sobretudo Jerome Robbins. O disco é Leonard Bernstein e Stephen Sondheim.

A maior proeza de Robbins passou por remover o papel onírico que os números de dança desempenhavam nos musicais e, com genialidade e particular crueza, coreografar a "rua". Inadvertidamente, fundou um estilo que ainda nos massacra, em videoclips, anúncios publicitários e concertos de vedetas "pop". As peças de Bernstein, pelo contrário, não deixaram herdeiros para além do próprio Sondheim. Nem podiam. Na sua desmesurada elegância, as canções de West Side Story, caldo americaníssimo de Tin Pan Alley, jazz, rumbas e Mahler, empurraram a música popular para um lugar demasiado próximo da perfeição, que o "rock" então emergente se encarregaria de subverter pela sedução das massas. Em 1957, a solenidade de Maria ou Tonight era já um corpo estranho numa sociedade entusiasmada com Little Richard e Elvis Presley. Hoje, quando o rap ou o heavy metal completaram o processo de regressão infantil, Maria, America e Somewhere parecem literalmente vindas de outro mundo. E talvez venham: cinquenta anos é uma eternidade, que as moderadas comemorações nos EUA não apagam e o silêncio daqui não perturba.

Sábado, 29 de Setembro

M & M

Na sexta-feira, eu pensava que Marques Mendes voltaria a ganhar o partido. Depois de Rui Rio/Fernando Gomes, em 2001, foi a primeira ocasião em que falhei um prognóstico eleitoral. Em meu benefício, acrescento que nas outras eleições costumo ter uma noção do que se passa. Nas "directas" do PSD, eu não fazia ideia. A campanha consistiu em arregimentar militantes e afugentar os demais cidadãos. Não pertencendo ao bando, deixei-me afugentar com gosto, e nem os deveres de ofício me motivaram a olhar para trás. Ao longe, reparei vagamente num episódio com índios ou "índios" brasileiros, pagamentos de quotas por atacado, acusações de fraude, arremedos de desistências e ofensas mútuas.

Julgo que não perdi grande coisa, excepto a paciência para lutas sem propósito. Certo, Menezes venceu. E? Para um observador desinteressado, não há drama nem glória. Eventualmente com mais estardalhaço, seguramente com idêntico alcance, o PSD seguirá o redundante caminho que Mendes trilhou com esmero. Peritos insinuam que o resultado das "directas" satisfez Sócrates, mas não explicam de que modo a vitória de Mendes atiraria o primeiro-ministro para uma depressão. Peritos diferentes juram que Menezes vai arrasar o Governo, mas não especificam como é que uma retórica nebulosa e ideologicamente esquizofrénica incomoda um Executivo com sondagens folgadas.

Pela milésima vez: o destino de Sócrates não depende do PSD e de Menezes; o destino do PSD depende de Sócrates e respectivas circunstâncias. Já é duvidoso que dependa de Menezes. Apesar da anunciada debandada, os "notáveis" tentarão resistir à fúria igualitária das "bases" e esperar por 2009. Ou por 2011. A maioria até é profissional da espera.