Domingo, 23 de Setembro
'MÃE? LIGUEI SÓ PARA DIZER QUE ESTE MÊS NÃO NOS DÁ
JEITO IR AÍ. BEIJINHOS'
Aqui há uns anos, distribuir torradeiras,
frigoríficos e microondas pelas massas era
desfaçatez digna do pior populismo. Hoje, dar
telemóveis a velhinhos, como faz o Governo Civil de
Braga com o apoio do ministro Vieira da Silva, é uma
iniciativa de enorme alcance social. É possível que
dos vulgares electrodomésticos de cozinha às
conquistas das tecnologias de comunicação haja uma
qualquer distância ética que me escapa. O Governo
também espalha computadores pelo povo e poucos
criticam convictamente o gesto.
Ou então foram os tempos que mudaram, e entretanto
tornou-se louvável comprar a simpatia popular
mediante a oferta de entulho diverso. Se é disto que
se trata, e dependendo do entulho, o princípio não
me parece mau. Há muito que os cidadãos desistiram
de aguardar contrapartidas pelo seu empenho cívico e
lisura. As pessoas votam, elegem representantes,
pagam os salários dos representantes, pagam a mando
dos representantes impostos directos, indirectos e
acumulados, descontam para o que calha e recebem de
volta reformas pífias, serviços estatais anedóticos,
"desígnios nacionais", um chafariz na praça e
indiferença.
Um telemóvel, pelo menos, é um bem palpável,
bastante preferível ao chafariz ou a três horas de
espera no centro de saúde. No caso dos "idosos
isolados" de Braga, para recorrer aos termos do
governador civil, o telemóvel é uma autêntica
bênção, que poupa aos familiares a maçada da
deslocação a casa dos velhinhos, agravando o
isolamento destes mas aumentando imenso a qualidade
de vida daqueles. As grandes rupturas políticas
nunca são consensuais: o major Valentim, esse
precursor, que o diga.
Segunda, 24 de Setembro
TROCA DE BALAS
Para combater o sono induzido pela lengalenga
oficial sobre a matéria, vale a pena seguir a
(adiada) troca de seringas nas prisões com um livro
à mão. O livro chama-se Junk Medicine: Doctors, Lies
and the Addiction Bureaucracy. O autor é Theodore
Dalrymple, pseudónimo do psiquiatra inglês Anthony
Daniels, colunista da revista Spectator e médico
(reformado) de uma prisão em Birmingham.
A tese de Dalrymple é simples: a convenção de que o
uso de narcóticos é uma doença serve apenas para
desresponsabilizar os sujeitos que os consomem e
empregar os sujeitos que, alegadamente, tratam o
problema. Na longa experiência de Dalrymple, nem o
drogado é um doente nem as drogas ditas duras
fomentam uma dependência impossível de interromper
sem ajuda externa. O "vício" é, acima de tudo,
deliberado: é iniciado de livre vontade (ao invés da
pneumonia) e pode ser abandonado de livre vontade
(ao invés da pneumonia), com desconforto mas longe
do tormento físico popularmente difundido. Dalrymple
não nega as consequências clínicas do hábito
(hepatite, Sida, tuberculose), nega que as
consequências façam do hábito uma doença (o
montanhismo não é uma doença embora os montanhistas
sofram queimaduras do frio). E garante que prevenir
os efeitos de um acto deliberado é estimular a
repetição do acto. Ou seja: nada de seringas ou
injecção "assistida".
Se por milagre o lessem, "Junk Medicine" seria uma
fonte de irritação permanente para hordas de
médicos, psicólogos, sociólogos, assistentes sociais
e funcionários afins. Para mim, foi um prazer,
excitante até na discórdia. Para mencionar um
pormenor, a ideia (ideia de Dalrymple) de que, em
vez de predispor ao crime, a droga é reflexo de uma
espécie de "vocação criminosa", logo punível, não me
convenceu inteiramente. Não acho que cidadãos
maiores e vacinados (aliás frequentemente, e com
diversas substâncias) devam ser detidos à conta dos
extremos testes a que submetem as entranhas. Porém,
é polémico que se gastem fortunas a salvá-los deles
próprios. Polémico e ocasionalmente ridículo: no que
respeita às seringas nas prisões, o Estado estará,
no limite, a fornecer ao heroinómano os meios para
que continue a cometer o crime pelo qual foi
condenado. Rezo para que o paternalismo não alargue
o método aos homicidas.
Terça, 25 de Setembro
UM PORTUGUÊS EM NOVA IORQUE
A fim de legitimar a sua ecológica intervenção nas
Nações Unidas, o eng. Sócrates lembrou à Assembleia
Geral que "os cientistas já falaram" sobre as
emissões de CO2 e as terríveis consequências das
alterações climáticas. Os cientistas, de facto, são
uns tagarelas. O problema é não dizerem coisa com
coisa. Há os que juram a influência do Homem no
aquecimento global, os que afirmam a irrelevância do
Homem no aquecimento global, os que garantem a
inexistência do aquecimento global, os que provam a
trivialidade do aquecimento global, os que prevêem o
fim do mundo para meados de Novembro, os que prevêem
o arrefecimento da Terra, os que se riem das
previsões e os que criticam as opções de Camacho
para a ala direita do Benfica.
À semelhança do que faz o estadista contemporâneo
médio, o eng. Sócrates liga somente às vozes
catastrofistas. Compreende-se, já que as restantes
não favorecem oratórias grandiloquentes, com
exortações da vontade colectiva e genérica pose de
senhor da Europa. Infelizmente para o
primeiro-ministro, nem assim alguém prestou atenção
aos importantíssimos lugares comuns que debitou na
ONU: em Nova Iorque e no mundo, os espectadores
limitaram-se a acompanhar com um sorriso a sua
peculiar competência da língua inglesa.
Não é uma atitude bonita. É evidente que, por
comparação, o eng. Sócrates faz Mourinho parecer a
rainha Isabel II. Aliás, são públicas as
dificuldades que o governante sentiu na disciplina
em causa, concluída em horário pós-laboral e à
distância. E depois? Principalmente em Portugal, há
um orgulho provinciano na alegada vocação do
indígena para o domínio do inglês, que nos leva a
gozar com o sotaque dos espanhóis mas não nos leva a
ler Swift ou Twain no original. No máximo, ajuda-nos
a indicar direcções a turistas, tarefa que
provavelmente não compete ao chefe do Governo.
Ignoradas as más-línguas, o eng. Sócrates mostrou
enorme coragem, e uma saudável sobranceria, ao
exibir na sede da ONU o seu abundante desprezo por
linguajares estrangeiros. A atitude acabou por ser
uma subtil afirmação patriótica, cuja única maçada
foi, repito, o conteúdo do discurso não ter sido
percebido ou, o que é pior, ter sido percebido ao
contrário. Quando, por exemplo, o eng. Sócrates
exigiu às autoridades da Birmânia que respeitassem
os direitos humanos, as autoridades da Birmânia
desataram imediatamente a matar manifestantes. E as
emissões de CO2 ainda não baixaram, o que decerto
sucederia abruptamente caso o eng. Sócrates usasse o
português e confiasse na tradução. Mas mais CO2,
menos birmanês, valeu a pena.
Quarta, 26 de Setembro
VIVA SANTANA!
Ao serão, Santana Lopes fala nos estúdios da Sic
Notícias acerca das eleições no PSD. A jornalista de
plantão, Ana Lourenço, desculpa-se, corta a palavra
a Santana e passa a emissão para a chegada de José
Mourinho à Portela. Levamos com filmagens
turbulentas, vultos, Mourinho num carro, o carro em
fuga e um pobre repórter a pronunciar as insanidades
do costume. Regressamos a Santana. Ou não: Santana
não gosta da troca e, após legítimos queixumes,
termina a entrevista ali. Mais tarde, no Jornal da
Meia-Noite, um moço da casa acusa-o, à traição, de
abandonar a meio tudo aquilo em se mete. Mais tarde
ainda, Ricardo Costa justifica a trapalhada com
opções editoriais e com os "alinhamentos em aberto".
A estação é deles. Mas os ingénuos que tomavam a Sic
Notícias como um modelo de rigor informativo
aprenderam que interromper um ex-primeiro-ministro
(ou qualquer criatura, vá lá) para transmitir as
escalas aéreas do célebre treinador é, no contexto,
uma opção editorial válida. Espera-se que Mourinho
não decida apanhar um "charter" para as Seychelles
durante a cobertura de um atentado terrorista, sob
pena de "abrir" irremediavelmente o "alinhamento".
O engraçado é que, num ápice, Santana blasfemou
contra as supremas divindades nacionais: a televisão
e o futebol. E os portugueses, em geral atentos e
venerandos face a ambas, correram para os blogues e
os fóruns "on line" a exaltar Santana, que fez uma
carreira à custa das câmaras e da bola, e que acabou
a noite como um herói de facto improvável e muito
português. À saída, o herói proclamou duas coisas:
a) o país está doido; b) o país tem de aprender. A
primeira é uma evidência, a segunda uma ilusão.
Quinta, 27 de Setembro
REALIZAR PESSOAS
A maior vantagem de não se ter filhos é viver ao
largo das reformas educativas. A desvantagem é que
cada contacto com esse excêntrico universo é uma
infalível surpresa e um intenso choque. Através dos
jornais, para citar um exemplo, fui informado de que
21% das escolas nacionais ainda não leccionam
educação sexual. É grave: aparentemente, 79% das
escolas já leccionam educação sexual.
Isto significa que uma larguíssima percentagem das
crianças nativas é diariamente exposta a áreas do
conhecimento tão vitais quanto Violência e Saúde
Mental, Doenças Sexualmente Transmissíveis e
Alimentação. Estas maravilhas são o produto de um
Grupo de Trabalho coordenado pelo dr. Daniel
Sampaio. Pelos vistos a sra. ministra da Educação
entendeu que os fantasmas íntimos do famoso
psiquiatra deviam assombrar meninos e meninas
inocentes. Com que fim? Um recente relatório do
Grupo esclarece: "é essencial que a escola ajude os
seus alunos a desenvolverem um conjunto de
qualidades que lhes permitam encontrar uma conduta
sexual que contribua para a sua realização como
pessoas."
Não verdade, não esclarece por aí além, a não ser
que a aprendizagem de português de gente não é
essencial para as crianças alcançarem, no futuro, um
emprego na coordenação de projectos ministeriais. No
mais, expostas ao dr. Sampaio, Formação Cívica, Área
Projecto e endoutrinamentos afins, o futuro delas
afigura-se negro. Não admira que o ensino seja
obrigatório: se eu tivesse filhos, só os
matricularia em tamanha alucinação sob ameaça de
arma.
Sexta, 28 de Setembro
UMA EFEMÉRIDE DISCRETA
No final de Setembro de 1957, West Side Story, a
história de Romeu e Julieta entre gangues de
Manhattan, estreou na Broadway com um sucesso que a
posteridade exagerou. Condicionantes cronológicas
impediram-me de assistir à obra, salvo em pedacinhos
degradados e a preto e branco. Por vingança, vejo o
filme quase todos os meses e ouço o disco todas as
semanas. O filme, abençoado com um camião de óscares,
é sobretudo Jerome Robbins. O disco é Leonard
Bernstein e Stephen Sondheim.
A maior proeza de Robbins passou por remover o papel
onírico que os números de dança desempenhavam nos
musicais e, com genialidade e particular crueza,
coreografar a "rua". Inadvertidamente, fundou um
estilo que ainda nos massacra, em videoclips,
anúncios publicitários e concertos de vedetas "pop".
As peças de Bernstein, pelo contrário, não deixaram
herdeiros para além do próprio Sondheim. Nem podiam.
Na sua desmesurada elegância, as canções de West
Side Story, caldo americaníssimo de Tin Pan Alley,
jazz, rumbas e Mahler, empurraram a música popular
para um lugar demasiado próximo da perfeição, que o
"rock" então emergente se encarregaria de subverter
pela sedução das massas. Em 1957, a solenidade de
Maria ou Tonight era já um corpo estranho numa
sociedade entusiasmada com Little Richard e Elvis
Presley. Hoje, quando o rap ou o heavy metal
completaram o processo de regressão infantil, Maria,
America e Somewhere parecem literalmente vindas de
outro mundo. E talvez venham: cinquenta anos é uma
eternidade, que as moderadas comemorações nos EUA
não apagam e o silêncio daqui não perturba.
Sábado, 29 de Setembro
M & M
Na sexta-feira, eu pensava que Marques Mendes
voltaria a ganhar o partido. Depois de Rui
Rio/Fernando Gomes, em 2001, foi a primeira ocasião
em que falhei um prognóstico eleitoral. Em meu
benefício, acrescento que nas outras eleições
costumo ter uma noção do que se passa. Nas
"directas" do PSD, eu não fazia ideia. A campanha
consistiu em arregimentar militantes e afugentar os
demais cidadãos. Não pertencendo ao bando, deixei-me
afugentar com gosto, e nem os deveres de ofício me
motivaram a olhar para trás. Ao longe, reparei
vagamente num episódio com índios ou "índios"
brasileiros, pagamentos de quotas por atacado,
acusações de fraude, arremedos de desistências e
ofensas mútuas.
Julgo que não perdi grande coisa, excepto a
paciência para lutas sem propósito. Certo, Menezes
venceu. E? Para um observador desinteressado, não há
drama nem glória. Eventualmente com mais
estardalhaço, seguramente com idêntico alcance, o
PSD seguirá o redundante caminho que Mendes trilhou
com esmero. Peritos insinuam que o resultado das
"directas" satisfez Sócrates, mas não explicam de
que modo a vitória de Mendes atiraria o
primeiro-ministro para uma depressão. Peritos
diferentes juram que Menezes vai arrasar o Governo,
mas não especificam como é que uma retórica nebulosa
e ideologicamente esquizofrénica incomoda um
Executivo com sondagens folgadas.
Pela milésima vez: o destino de Sócrates não depende
do PSD e de Menezes; o destino do PSD depende de
Sócrates e respectivas circunstâncias. Já é duvidoso
que dependa de Menezes. Apesar da anunciada
debandada, os "notáveis" tentarão resistir à fúria
igualitária das "bases" e esperar por 2009. Ou por
2011. A maioria até é profissional da espera.