Público - 29 Set 06

Lembram-se do monstro?

José Miguel Júdice

 

O Fórum Económico Mundial (Davos) estabeleceu o ranking da Competitividade Global no Mundo, em 2006. O PÚBLICO e o Diário de Notícias descrevem de forma diferente os factos. A notícia do primeiro é mais objectiva e rigorosa do que a do segundo, que em manchete atribui ao sector privado a responsabilidade da queda de posição, o que parece ser apenas parte da verdade, e seguramente a menos importante.
Seja como for, o facto objectivo é que não piorámos em termos absolutos, mas outros países - que melhoraram - passaram à nossa frente, demonstrando-se que estar parado num tempo de mudança é andar para trás. Éramos o 31º e passámos a ser o 34º. O que - dirão os inveterados optimistas - não é mau, se nos compararmos com Angola (125º) ou até com a Itália, a China ou a Polónia. Mas, dirão os pessimistas, é mau, se nos compararmos com a Estónia, a República Checa, a Tunísia e Barbados.
Também é um facto objectivo - apesar da manchete do DN - que os nossos piores indicadores são da responsabilidade do Estado: o défice orçamental (ficamos no lugar 116º), a (falta de) flexibilidade das leis laborais (104º), a dívida pública (75º). Com responsabilidades em parceria público/privado está a seguir a absorção da tecnologia a nível das empresas (63º). Dir-se-á que este Fórum tem preconceitos ideológicos pró-capitalistas. Pois é, mas quem decide sobre a localização dos investimentos também tem esses preconceitos, pelo que constatar o enviesamento deve-nos preocupar ainda mais do que se o ranking fosse considerado imparcial e objectivo.
Também esta semana a Comissão de Revisão do Sistema de Carreiras e Remunerações da Função Pública, nomeada pelo Estado, afirma, nas palavras do PÚBLICO, "que está quase tudo mal na administração pública" e, sobretudo, conclui que nos últimos 20 anos o funcionalismo público aumentou 50 por cento em contra-ciclo com a tendência dos nossos concorrentes europeus. O Compromisso Portugal, pelo seu lado, afirmou que há cerca de 200.000 funcionários públicos a mais, o que foi muito criticado, ainda que só mesmo alguns sindicatos tenham ousado afirmar que há funcionários a menos. Mas a única questão que deveria ser respondida quanto a isso (e não foi) é se - por mais "liberais" ou "capitalistas" ou "anti-sociais" que sejam os promotores - eles têm ou não razão na análise que fazem ao peso do funcionalismo público português.
Neste contexto, mais uma vez, o Governo veio declarar que não haverá despedimentos na função pública, curiosamente na mesma semana em que são encerradas duas fábricas e lançados para o desemprego quase 1000 trabalhadores, ou seja, somos todos iguais perante a lei, mas uns são mais iguais do que os outros na prática: quem entra para o Estado tem emprego garantido para a vida e quem entra para uma empresa privada não tem. O que, em termos de justiça social, dispensa palavras. E em termos de alocação de recursos dispensa teorias: só vai trabalhar para as empresas privadas quem não conseguir garantir emprego no Estado... até porque o Estado, além de dar mais garantias, paga melhor. Por vezes, paga mesmo melhor do que os países ricos da Europa, como parece ser o caso dos professores.
Moral da história? Andam, mais uma vez, a gozar connosco. Portugal - por muito que quem está instalado no Estado o queira esquecer - está em competição com outros países por investimento produtivo. Quem decide os investimentos analisa friamente as oportunidades e os problemas. Os custos de contexto são factor decisivo nas opções de investimento. E as empresas portuguesas - sobretudo as que se não podem deslocalizar - perdem competitividade de cada vez que Portugal a perde ou que se gera a convicção global de que é assim. E pela diminuição do investimento, pela perda de competitividade e pelos encerramentos de empresas, cada vez a situação se vai tornando pior.
Sejamos, pois, claros: se o Estado tem funcionários a menos para desempenhar funções que aumentem a competitividade, deve contratar. Se tem funcionários a mais, deve despedir ou, seja qual for a forma escolhida, deve reduzir. Pelo menos para que esses despedidos possam ir para a economia produtiva, ainda que ganhando menos e trabalhando mais, como fazemos nós os que não temos lugares garantidos à mesa do Orçamento.
Se o Estado drena recursos em excesso (e, pelo critério do défice orçamental, estamos no lugar 116º do ranking!), prejudica a competitividade e o emprego na economia real. Se o Estado mantém emprego artificial, está a subsidiar o sector não produtivo em desfavor do sector produtivo. Se o Estado não emagrece, nunca conseguirá reduzir o défice em comparação com os nossos concorrentes (veja-se o caso da Espanha, que está com superavit orçamental) e, com isso, nunca poderá competir em sede de apoios directos ou indirectos ao investimento. Se o Estado não cessa contratos com quem nada está a fazer que se justifique, não pode contratar quem seria muito útil para as suas funções públicas. Se o Estado adia os despedimentos hoje, está apenas a criar desemprego amanhã.
Sofismar ou negar isto não é opção ideológica, é puro disparate. E nada tem a ver com a necessidade de haver quem lute pelos direitos dos trabalhadores, que vezes de mais são desrespeitados (e José Maria Ricciardi, no Compromisso Portugal, sem papas na língua e com coragem, afirmou-o claramente), pois também por aí passa a competitividade portuguesa.
Claro que podemos continuar com os paninhos quentes, com a língua de trapos, com o discurso redondinho, com o politicamente correcto, com as cortinas de fumo e com a propaganda. Mas nada disso resolve coisa nenhuma. Como bem sabe o economista que há tempos escreveu um notabilíssimo artigo denominado "O monstro". Advogado