Público - 11 Set 06

Qualidade de vida, política e educação

Mário Pinto

1.Nestes dias de recomeço pós-férias, volta o nosso desgraçado trânsito, que diariamente, manhãs e tardes, já se tornou notícia obrigatória nas rádios e televisões. O trânsito caótico que sofremos é causa de stress (portanto de doença, sofrimento e despesa): é ladrão de uma boa parte do nosso tempo; é déspota que nos obriga constantemente a alterar os horários e chega a impedir-nos uma vida familiar normal; é factor altamente negativo para a produtividade.
Ora o drama do trânsito é sobretudo devido ao mau planeamento urbanístico que temos tido desde há décadas. E o mais cruel é que, sendo tudo previsível, as decisões foram generalizadamente oportunistas e irresponsáveis, para não dizer corruptas e criminosas. As autarquias são dos maiores culpados; e continuam a sê-lo, por acção e por omissão. Dependendo financeiramente das «urbanizações», o que é horrível, sobrecarregaram o território de modo humanamente inaceitável. E não planearam as vias de circulação e os espaços de modo racional. As autarquias dão muitas vezes prioridade a coisas secundárias mas que enchem o olho dos eleitores, enquanto desprezam a melhoria das reais condições de vida com qualidade. Por exemplo, obrigam-nos a uma tortura diária para ir trabalhar e levar os filhos ou os netos à escola, e julgam que nos compensam com fontes iluminadas no centro das rotundas ou umas flores dependuradas de uns candeeiros. Por outro lado, as autoridades centrais têm as mais altas e últimas responsabilidades, a que não podem fugir.
É indispensável dramatizar em Portugal o problema da qualidade de vida, com toda a amplitude e urgência. Pois que de um drama de vida ou de morte se trata.

2. A "qualidade de vida" é uma ideia velha, mas é um conceito novo no alcance e importância que hoje reveste no debate sócio-político, porque corresponde a um fenómeno social novo e de grande agudeza na história humana. O progresso das condições materiais de vida provocam uma degradação ecológica de grandes efeitos. Os sistemas ambientais em que nos movíamos há milénios eram relativamente estáveis e auto-sustentáveis; mas, com o progresso, deixaram de o ser. Por outro lado, o nosso viver alterou-se, em múltiplos aspectos, para pior e até muito pior. Insustentabilidade ecológica e má qualidade de vida: eis a questão.

3. Eu penso que a qualidade de vida tem que ver, sobretudo, com o bem-estar da alma. Embora dependa de condições materiais mínimas de vida, esse bem-estar pode não existir até com excelentes condições materiais: muitas pessoas têm saúde e altos níveis de satisfação "física", com todas as comodidades económicas e materiais, e contudo são muito sofredoras na vida "psíquica" que levam. Por outro lado, as condições materiais e económicas avançadas não raro provocam má qualidade de vida. Isso é sabido. Desta forma, torna-se muito claro que o problema da qualidade de vida tem autonomia relativamente ao progresso material.

4. Há uma qualidade de vida pessoal (e até certo ponto familiar) que é problema da autonomia de cada um (e de cada família), porque depende de opções e escolhas pessoais. Mas há também condições de vida que são socialmente impostas e não dependem da escolha e da autonomia de cada pessoa e de cada família. Temos portanto a questão da qualidade de vida no âmbito sócio-político (do Estado) e também no âmbito sócio-cultural e educativo (da sociedade civil). São duas direcções de preocupação, ambas importantes. E difíceis: não esquecer que há quem ganhe com a má qualidade de vida. De certo modo, os negócios têm nela uma fabulosa fonte de lucros, a montante a jusante.

5. No campo político, ainda que não exclusivamente, temos hoje os ambientalistas. São profetas que se levantam para denunciar os nossos actuais pecados ecológicos. Bem-vindos sejam. Porém, não raro se ocupam dos eco-sistemas naturais, deixando para segundo lugar os eco-sistemas sociais e espirituais. A brincar dizemos às vezes (talvez com alguma injustiça) que se preocupam mais com os animais e as plantas do que com as pessoas. A sua acção é indispensável e necessitamos de que cresça. Por outro lado, os grandes partidos deveriam dar mais atenção à ecologia integral, mas especialmente à urbanística e à viária. Seria possível aumentar os instrumentos de controlo das decisões e das ofensas anti-ambientais, por exemplo através de provedores do ambiente em cada município e ainda de um «rating» ambiental nacional dos municípios elaborado por alta autoridade competente?

6. Na perspectiva educativa, os sacrifícios a favor da preservação do ambiente e da qualidade de vida necessitam de uma matriz educativa geral, que pode reconduzir-se a esta alternativa: "segue a razão"; ou então, "segue o que sentes".
Este último é um «slogan» publicitário e uma mina para negócios; mas é também um leit-motiv cultural dominante. No nosso presente nacional, a multiplicação quantitativa e intensitiva da satisfação imediata das sensações agradáveis poderá ser uma exploração económica dos publicitários, mas não pode ser nem parecer ser aceite pelos educadores.
O que os educadores antigamente diziam era o contrário: não sigas o que sentes, não te deixes arrastar pelos sentidos, pondera e decide com a tua razão e com a tua consciência, dominando se necessário os impulsos ou atractivos dos sentidos. Repara que a razão, e o auto-domínio consequente dela, é a faísca que caracteriza os humanos. Sem isto, não nos distinguimos dos outros animais.

7. Pergunto, a terminar: se a racionalidade e a ética já não possuem prestígio universal para os educadores, poderão eles ao menos ser sensíveis ao problema da qualidade de vida? Poderão ao menos invocar a qualidade de vida como postulado educativo? Então dirão: não sigas o que sentes, mas sim o que é racionalmente bom para uma boa e integral qualidade de vida.