1.Nestes dias de recomeço pós-férias, volta o nosso
desgraçado trânsito, que diariamente, manhãs e
tardes, já se tornou notícia obrigatória nas rádios
e televisões. O trânsito caótico que sofremos é
causa de stress (portanto de doença, sofrimento e
despesa): é ladrão de uma boa parte do nosso tempo;
é déspota que nos obriga constantemente a alterar os
horários e chega a impedir-nos uma vida familiar
normal; é factor altamente negativo para a
produtividade.
Ora o drama do trânsito é sobretudo devido ao mau
planeamento urbanístico que temos tido desde há
décadas. E o mais cruel é que, sendo tudo
previsível, as decisões foram generalizadamente
oportunistas e irresponsáveis, para não dizer
corruptas e criminosas. As autarquias são dos
maiores culpados; e continuam a sê-lo, por acção e
por omissão. Dependendo financeiramente das
«urbanizações», o que é horrível, sobrecarregaram o
território de modo humanamente inaceitável. E não
planearam as vias de circulação e os espaços de modo
racional. As autarquias dão muitas vezes prioridade
a coisas secundárias mas que enchem o olho dos
eleitores, enquanto desprezam a melhoria das reais
condições de vida com qualidade. Por exemplo,
obrigam-nos a uma tortura diária para ir trabalhar e
levar os filhos ou os netos à escola, e julgam que
nos compensam com fontes iluminadas no centro das
rotundas ou umas flores dependuradas de uns
candeeiros. Por outro lado, as autoridades centrais
têm as mais altas e últimas responsabilidades, a que
não podem fugir.
É indispensável dramatizar em Portugal o problema da
qualidade de vida, com toda a amplitude e urgência.
Pois que de um drama de vida ou de morte se trata.
2. A "qualidade de vida" é uma ideia velha, mas é um
conceito novo no alcance e importância que hoje
reveste no debate sócio-político, porque corresponde
a um fenómeno social novo e de grande agudeza na
história humana. O progresso das condições materiais
de vida provocam uma degradação ecológica de grandes
efeitos. Os sistemas ambientais em que nos movíamos
há milénios eram relativamente estáveis e
auto-sustentáveis; mas, com o progresso, deixaram de
o ser. Por outro lado, o nosso viver alterou-se, em
múltiplos aspectos, para pior e até muito pior.
Insustentabilidade ecológica e má qualidade de vida:
eis a questão.
3. Eu penso que a qualidade de vida tem que ver,
sobretudo, com o bem-estar da alma. Embora dependa
de condições materiais mínimas de vida, esse
bem-estar pode não existir até com excelentes
condições materiais: muitas pessoas têm saúde e
altos níveis de satisfação "física", com todas as
comodidades económicas e materiais, e contudo são
muito sofredoras na vida "psíquica" que levam. Por
outro lado, as condições materiais e económicas
avançadas não raro provocam má qualidade de vida.
Isso é sabido. Desta forma, torna-se muito claro que
o problema da qualidade de vida tem autonomia
relativamente ao progresso material.
4. Há uma qualidade de vida pessoal (e até certo
ponto familiar) que é problema da autonomia de cada
um (e de cada família), porque depende de opções e
escolhas pessoais. Mas há também condições de vida
que são socialmente impostas e não dependem da
escolha e da autonomia de cada pessoa e de cada
família. Temos portanto a questão da qualidade de
vida no âmbito sócio-político (do Estado) e também
no âmbito sócio-cultural e educativo (da sociedade
civil). São duas direcções de preocupação, ambas
importantes. E difíceis: não esquecer que há quem
ganhe com a má qualidade de vida. De certo modo, os
negócios têm nela uma fabulosa fonte de lucros, a
montante a jusante.
5. No campo político, ainda que não exclusivamente,
temos hoje os ambientalistas. São profetas que se
levantam para denunciar os nossos actuais pecados
ecológicos. Bem-vindos sejam. Porém, não raro se
ocupam dos eco-sistemas naturais, deixando para
segundo lugar os eco-sistemas sociais e espirituais.
A brincar dizemos às vezes (talvez com alguma
injustiça) que se preocupam mais com os animais e as
plantas do que com as pessoas. A sua acção é
indispensável e necessitamos de que cresça. Por
outro lado, os grandes partidos deveriam dar mais
atenção à ecologia integral, mas especialmente à
urbanística e à viária. Seria possível aumentar os
instrumentos de controlo das decisões e das ofensas
anti-ambientais, por exemplo através de provedores
do ambiente em cada município e ainda de um «rating»
ambiental nacional dos municípios elaborado por alta
autoridade competente?
6. Na perspectiva educativa, os sacrifícios a favor
da preservação do ambiente e da qualidade de vida
necessitam de uma matriz educativa geral, que pode
reconduzir-se a esta alternativa: "segue a razão";
ou então, "segue o que sentes".
Este último é um «slogan» publicitário e uma mina
para negócios; mas é também um leit-motiv cultural
dominante. No nosso presente nacional, a
multiplicação quantitativa e intensitiva da
satisfação imediata das sensações agradáveis poderá
ser uma exploração económica dos publicitários, mas
não pode ser nem parecer ser aceite pelos
educadores.
O que os educadores antigamente diziam era o
contrário: não sigas o que sentes, não te deixes
arrastar pelos sentidos, pondera e decide com a tua
razão e com a tua consciência, dominando se
necessário os impulsos ou atractivos dos sentidos.
Repara que a razão, e o auto-domínio consequente
dela, é a faísca que caracteriza os humanos. Sem
isto, não nos distinguimos dos outros animais.
7. Pergunto, a terminar: se a racionalidade e a
ética já não possuem prestígio universal para os
educadores, poderão eles ao menos ser sensíveis ao
problema da qualidade de vida? Poderão ao menos
invocar a qualidade de vida como postulado
educativo? Então dirão: não sigas o que sentes, mas
sim o que é racionalmente bom para uma boa e
integral qualidade de vida.