Público - 23 Set 05

 

A vida em festa

Pedro Strecht

Quando muitos adultos responsáveis por políticas que influenciam o crescimento emocional dos mais novos perceberem que a existência de referências sociais e culturais funciona como âncora de reforço psíquico, então um passo importante para o amparo de muitas crianças e adolescentes terá sido dado

"Confesso que não sei como me ponho
Ao ver tanto sonho nascer vida,
Ao ver de tanta vida nascer sonho."
(do programa das Feiras Novas
de Ponte de Lima, Setembro de 2005)

Uma das questões mais importantes do crescimento emocional dos mais novos assenta na existência de ligações afectivas de qualidade das crianças e adolescentes ao meio social envolvente. Realidade interna e realidade externa coabitam numa eterna busca de equilíbrio a que as estruturas de personalidade em formação são especialmente sensíveis. Desajustes entre ambas podem causar impactos sérios em qualquer das partes, e é isso que explica que um meio envolvente desadequado ou patogénico produza uma marca, um traço negativo na construção do equilíbrio psíquico de um rapaz ou de uma rapariga, e que, da mesma forma, certos tipos de sofrimento interno possam produzir sérios impactos no meio exterior, como no caso da marginalidade ou delinquência, em que os jovens agem o seu próprio mal-estar interior contra quem os cerca.
Dessa maneira, a existência de boas ligações afectivas a determinado meio social e cultural promove um sentimento de identidade e pertença dos mais novos, que com ele passam a interagir mais adequadamente. São essas mesmas ligações que também criam uma identidade social que permite a existência de mecanismos de identificação a pessoas e valores.
Hoje, a ausência de boas referências sociais de muitas crianças e adolescentes cria mecanismos que potenciam a desintegração da personalidade e uma relação com o meio exterior de contornos negativos, hostis e agressivos. Por exemplo, os jovens que agridem o que os cerca, vandalizando, destruindo ou atacando pessoas e bens, são quase sempre rapazes ou raparigas sem uma integração de qualidade, pobres de referências sociais e culturais. É esse um dos problemas das populações de grandes bairros de realojamento que, em políticas anteriores, chegaram nalguns pontos a ser colocadas no mesmo local, vindas de zonas completamente diversas, com culturas e registos que não só eram absolutamente distintos como pouco pacíficos de coabitação: veja-se o exemplo do tristemente célebre Bairro da Belavista, em Setúbal, ou o de Casal de Cambra, em Sintra, hoje em dia fornecedor de centenas de casos de risco para a respectiva Comissão de Protecção de Menores.
Depois, nos dias que correm, existem mecanismos que potenciam esta "não integração" psíquica dos mais novos, como as falhas na estrutura familiar de base e o empobrecimento da qualidade real dos modelos de identificação, mesmo os transmitidos pelos grandes agentes da comunicação social. A esse propósito, basta passar os olhos por alguns dos programas televisivos desta nova temporada para simplesmente dizer "isto não é possível!..", e esperar que cada vez mais pais e adultos tornem real a possibilidade de criar pólos de cultura diferentes de uma lama onde é preciso não mergulhar, mesmo quando isso implica um caminho difícil e exigente na relação com os seus filhos.
Por isso, quando é possível assistir a espectáculos de cariz marcadamente popular, como as Feiras Novas de Ponte de Lima, no Minho, que movimentam milhares e milhares de pessoas numa genuína ligação à sua terra e à sua cultura, é fácil entender o valor da sua existência e da tradução de uma alegria e de um prazer de ser e de existir.
Ao longo de três dias, é possível ver muitos rapazes e raparigas, alguns de muito baixa idade, ligados às tradições seculares da sua terra (a vila comemora 880 anos de foral, isto é, anterior à própria nacionalidade de Portugal), trajando a rigor, integrados em bandas ou em grupos de danças e cantares de diversas colectividades, ou representando com brio num desfile etnográfico as características mais típicas das suas freguesias. Claro que todos estes aspectos dão não só vida e alegria a uma região como são expressão espontânea da ligação das pessoas a determinadas referência, que não só existem como se perpetuam no tempo, permitindo uma ligação e uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Por isso, não é difícil perceber que, para os mais novos que participam activamente no colorido humano destas festas, tudo isto são sinais de uma riqueza de ligações àquilo que os cerca.
É que a riqueza do bem-estar e do equilíbrio emocional de cada um também se mede pela capacidade destas ligações, por oposto às desligações psíquicas tão bem descritas por vários autores da psiquiatria e da psicologia, desapego esse que, em caso extremo, é a base da perda de amor à vida e dos respectivos ataques à existência (própria ou do outro). Por isso é que esta teia de ligações que expande e enriquece o funcionamento individual é sinal de uma melhor integração social, isto é, promove a capacidade de fazer face às hostilidades do meio envolvente.
Quando muitos adultos responsáveis por políticas que influenciam o crescimento emocional dos mais novos perceberem que a existência de referências sociais e culturais funciona como âncora de reforço psíquico, então um passo importante para o amparo de muitas crianças e adolescentes terá sido dado. Porque, por exemplo, cresce melhor aquele rapaz ou rapariga que conhece e é reconhecido no local onde vive, que sabe das referências dos seus pais e avós, que frequenta um espaço onde, nos tempos livres, pode praticar um desporto ou aprender a tocar um instrumento numa colectividade de bairro, do que aquele ou aquela que vive num sítio onde não tem qualquer raiz ou possibilidade real de a criar (porque, praticamente, só lá dorme), que foi afastado das suas ligações ancestrais ou que estas lhe foram branqueadas, ou que quando não está na escola, não tem nada nem ninguém onde se possa referenciar.
Todas as formas de ligação aos mais profundos aspectos de uma cultura devem ser reforçados durante o crescimento emocional dos mais novos. Para que, assentes num porto seguro, possam então, cada vez mais, crescer e explorar tudo aquilo que os cerca, em sonho e em vida, como numa festa. Pedopsiquiatra

"Feiras Novas, minha festa
Minha vila, que paixão!
É o povo que atesta
este amor do coração."

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