Pedro Strecht
Quando muitos adultos responsáveis por políticas que
influenciam o crescimento emocional dos mais novos
perceberem que a existência de referências sociais e
culturais funciona como âncora de reforço psíquico, então um
passo importante para o amparo de muitas crianças e
adolescentes terá sido dado
"Confesso que não sei como me ponho
Ao ver tanto sonho nascer vida,
Ao ver de tanta vida nascer sonho."
(do programa das Feiras Novas
de Ponte de Lima, Setembro de 2005)
Uma das questões mais importantes do crescimento emocional
dos mais novos assenta na existência de ligações afectivas
de qualidade das crianças e adolescentes ao meio social
envolvente. Realidade interna e realidade externa coabitam
numa eterna busca de equilíbrio a que as estruturas de
personalidade em formação são especialmente sensíveis.
Desajustes entre ambas podem causar impactos sérios em
qualquer das partes, e é isso que explica que um meio
envolvente desadequado ou patogénico produza uma marca, um
traço negativo na construção do equilíbrio psíquico de um
rapaz ou de uma rapariga, e que, da mesma forma, certos
tipos de sofrimento interno possam produzir sérios impactos
no meio exterior, como no caso da marginalidade ou
delinquência, em que os jovens agem o seu próprio mal-estar
interior contra quem os cerca.
Dessa maneira, a existência de boas ligações afectivas a
determinado meio social e cultural promove um sentimento de
identidade e pertença dos mais novos, que com ele passam a
interagir mais adequadamente. São essas mesmas ligações que
também criam uma identidade social que permite a existência
de mecanismos de identificação a pessoas e valores.
Hoje, a ausência de boas referências sociais de muitas
crianças e adolescentes cria mecanismos que potenciam a
desintegração da personalidade e uma relação com o meio
exterior de contornos negativos, hostis e agressivos. Por
exemplo, os jovens que agridem o que os cerca, vandalizando,
destruindo ou atacando pessoas e bens, são quase sempre
rapazes ou raparigas sem uma integração de qualidade, pobres
de referências sociais e culturais. É esse um dos problemas
das populações de grandes bairros de realojamento que, em
políticas anteriores, chegaram nalguns pontos a ser
colocadas no mesmo local, vindas de zonas completamente
diversas, com culturas e registos que não só eram
absolutamente distintos como pouco pacíficos de coabitação:
veja-se o exemplo do tristemente célebre Bairro da Belavista,
em Setúbal, ou o de Casal de Cambra, em Sintra, hoje em dia
fornecedor de centenas de casos de risco para a respectiva
Comissão de Protecção de Menores.
Depois, nos dias que correm, existem mecanismos que
potenciam esta "não integração" psíquica dos mais novos,
como as falhas na estrutura familiar de base e o
empobrecimento da qualidade real dos modelos de
identificação, mesmo os transmitidos pelos grandes agentes
da comunicação social. A esse propósito, basta passar os
olhos por alguns dos programas televisivos desta nova
temporada para simplesmente dizer "isto não é possível!..",
e esperar que cada vez mais pais e adultos tornem real a
possibilidade de criar pólos de cultura diferentes de uma
lama onde é preciso não mergulhar, mesmo quando isso implica
um caminho difícil e exigente na relação com os seus filhos.
Por isso, quando é possível assistir a espectáculos de cariz
marcadamente popular, como as Feiras Novas de Ponte de Lima,
no Minho, que movimentam milhares e milhares de pessoas numa
genuína ligação à sua terra e à sua cultura, é fácil
entender o valor da sua existência e da tradução de uma
alegria e de um prazer de ser e de existir.
Ao longo de três dias, é possível ver muitos rapazes e
raparigas, alguns de muito baixa idade, ligados às tradições
seculares da sua terra (a vila comemora 880 anos de foral,
isto é, anterior à própria nacionalidade de Portugal),
trajando a rigor, integrados em bandas ou em grupos de
danças e cantares de diversas colectividades, ou
representando com brio num desfile etnográfico as
características mais típicas das suas freguesias. Claro que
todos estes aspectos dão não só vida e alegria a uma região
como são expressão espontânea da ligação das pessoas a
determinadas referência, que não só existem como se
perpetuam no tempo, permitindo uma ligação e uma
continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Por
isso, não é difícil perceber que, para os mais novos que
participam activamente no colorido humano destas festas,
tudo isto são sinais de uma riqueza de ligações àquilo que
os cerca.
É que a riqueza do bem-estar e do equilíbrio emocional de
cada um também se mede pela capacidade destas ligações, por
oposto às desligações psíquicas tão bem descritas por vários
autores da psiquiatria e da psicologia, desapego esse que,
em caso extremo, é a base da perda de amor à vida e dos
respectivos ataques à existência (própria ou do outro). Por
isso é que esta teia de ligações que expande e enriquece o
funcionamento individual é sinal de uma melhor integração
social, isto é, promove a capacidade de fazer face às
hostilidades do meio envolvente.
Quando muitos adultos responsáveis por políticas que
influenciam o crescimento emocional dos mais novos
perceberem que a existência de referências sociais e
culturais funciona como âncora de reforço psíquico, então um
passo importante para o amparo de muitas crianças e
adolescentes terá sido dado. Porque, por exemplo, cresce
melhor aquele rapaz ou rapariga que conhece e é reconhecido
no local onde vive, que sabe das referências dos seus pais e
avós, que frequenta um espaço onde, nos tempos livres, pode
praticar um desporto ou aprender a tocar um instrumento numa
colectividade de bairro, do que aquele ou aquela que vive
num sítio onde não tem qualquer raiz ou possibilidade real
de a criar (porque, praticamente, só lá dorme), que foi
afastado das suas ligações ancestrais ou que estas lhe foram
branqueadas, ou que quando não está na escola, não tem nada
nem ninguém onde se possa referenciar.
Todas as formas de ligação aos mais profundos aspectos de
uma cultura devem ser reforçados durante o crescimento
emocional dos mais novos. Para que, assentes num porto
seguro, possam então, cada vez mais, crescer e explorar tudo
aquilo que os cerca, em sonho e em vida, como numa festa.
Pedopsiquiatra
"Feiras Novas, minha festa
Minha vila, que paixão!
É o povo que atesta
este amor do coração."