Diário Digital - 30 Set 04
Atestados e reformas
Hermínio Santos
Parece estar em marcha uma pulsão para a
decadência em Portugal. Não é uma decadência da moral, do
patriotismo ou da democracia, é uma decadência do carácter, dos
princípios da convivência leal com as outras pessoas, da verdade.
Tanto na política como na sociedade em geral, os portugueses só
parecem ter uma ambição: safarem-se. O que fica para trás, os cacos
que ficam por apanhar e as ambições e as esperanças dos que ainda
teimam em ser honestos não contam para nada. Atarefada com a agenda
mediática e pessoal, a política - quer a da oposição quer a do
Governo - vive para fazer as agendas dos telejornais e não para
pensar nos reais problemas de quem os elege. Na sociedade, o
princípio começa a ser o do salve-se quem puder.
Veja-se o caso dos atestados médicos usados pelos
professores para alegadamente beneficiarem de vantagens nas
colocações, ultrapassando assim colegas com mais anos de serviço e
mais direitos na carreira. Terão sido cerca de 9000 os docentes que
invocaram motivos de doença para beneficiar de prioridades nas
colocações. Com esta atitude, muitos deles terão abusado de um
direito que a lei lhes concede e colocado sob suspeita quem
realmente precisa de o utilizar. Estranhamente, os sindicatos dos
professores, sempre tão vigilantes na defesa dos seus interesses,
pouco ou nada dizem sobre esta vergonha nacional. Preferem falar (e
bem) dos erros da lista de colocação mas não podem enterrar a cabeça
na areia sobre a questão dos atestados. Estamos a falar de atitudes
de pessoas que intervirão num processo de formação cívica e social
de jovens.
Também a reforma de Mira Amaral, que parecia um
assunto arrumado depois de Bagão Félix ter definido a situação como
obscena, continua a ser um tema nebuloso. Num comunicado divulgado
na segunda-feira o próprio esclarece que só aceitou o convite do
Governo para liderar a CGD após ter recebido a garantia que
receberia uma reforma idêntica à que tinha direito no BPI, banco
onde era administrador. Fica assim fragilizada a tese do ministro
das Finanças que, na entrevista à RTP, esclareceu que a situação de
Mira Amaral estava enquadrada no regulamento interno da Caixa, e à
qual alguns administradores renunciaram e cuja existência Bagão
desconhecia.
Perante o comunicado de Mira Amaral, que se
limitou a tratar da sua vida e a salvaguradar os seus direitos,
advinha-se que quem o convidou para a CGD já sabia da existência
daquele regulamento. Seria interessante alguém esclarecer os
portugueses sobre o que diz o famoso regulamento interno da CGD -
porque não publicá-lo na Internet? - e ouvir os membros do Governo
anterior responsáveis pela área das Finanças sobre o tal
compromisso. Não está em causa o valor da reforma -se o regulamento
o permite não há nada a fazer - mas sim o processo. O Estado e o
Governo têm de dar o exemplo. Caso contrário, os professores que
recorreram abusivamente aos atestados sentem-se legitimados para
usarem meios que não são os mais correctos para resolver a sua vida
profissional.
hsantos@dinheirodigital.pt
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