Público - 27 Set 04
Pacta
Sunt Servanda
Por MÁRIO
PINTO
Mereceu
recentemente destaque na comunicação social a questão da
criminalização do adultério, na Turquia. Por mim, concordo que o
assunto merece destaque. A União Europeia rejeitou que tal solução
legislativa pudesse ser compaginável com a cultura e a democracia
ocidental. A meu ver, com toda a razão. O que me surpreendeu foi
que, na nossa televisão, algumas vozes tivessem tratado o assunto
com risota e sobranceria, como se o adultério fosse a coisa mais
admissível deste mundo. Ora nunca foi. Nem deve ser.
Que hei-de
fazer? Desprezar essas vozes, que ficaram sem contradita? Mas não é
hoje, a televisão, o nosso "maitre à penser" social? O nosso
poderoso agente de propaganda? O nosso suave Goebels da nossa suave
democracia de massas? Que de facto esbate ilustres e sérias
contribuições? Assim sendo, o assunto merece a maior atenção.
2. Na tradição
milenar, uma base fundamental do direito e da ordem social é o
postulado de que os contratos lealmente celebrados devem ser
fielmente cumpridos. De tal modo que a modernidade utilizou o
conceito de pacto para fundamentar a vida civil em sociedade. A
própria legitimidade do poder político assenta na base de um pacto.
Dos latinos
herdámos este princípio jurídico geral estabelecido: "pacta sunt
servanda", os contratos são para cumprir. Com efeito, se ninguém
pode confiar que o outro cumpre o que promete livremente, então
desaparece a base de confiança das relações sociais justas e
pacíficas. Tornamo-nos uns "troca-tintas" e, em consequência,
passaremos a viver numa contínua guerra homem contra homem. A
cooperação, o progresso e a paz tornam-se impossíveis, no plano
material como no plano espiritual. Creio mesmo que a linguagem
deixaria de nos ser necessária, porque não valeria nem significaria
nada, uma vez que só serviria para nos enganarmos uns aos outros.
3. Vamos ao
caso do casamento. O casamento é um contrato (contrato!) público e
solene. O nosso Código Civil diz que "a celebração do casamento é
pública e está sujeita às formalidades fixadas nas leis do registo
civil". Portanto, quando os noivos se casam, a sua promessa é
pública e solene.
Isto parece
muito bem, porque o casamento dá lugar a um 'status' social de
grande dignidade pessoal, familiar e de interesse público. É um
contrato melindroso, porque vincula as liberdades pessoais (note-se
que o objecto do contrato são as próprias pessoas dos nubentes). É
um estado social considerado não apenas necessário ao completamento
da pessoa humana, visto que fomos criados como "homem-e-mulher", mas
também à geração da espécie (e, na espécie humana, a criação dos
filhos é especialmente valiosa e complexa). Por isso é que, sem
testemunhas e oficial público, não há casamento; e sem as
solenidades que a lei impõe, não há casamento.
4. E o que é
que se pactua no casamento? No casamento católico, que nisto não é
inovador, os noivos prometem: amor mútuo fecundo, auxílio e
fidelidade por toda a vida. Dizem assim, sacramentalmente: eu, (e
acrescentam o nome próprio), recebo-te por meu esposo (ou esposa), a
ti (e dizem o nome próprio do outro/a), e prometo ser-te fiel,
amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, todos os dias da nossa vida. Esta promessa recíproca
ministra o sacramento: os ministros do sacramento são os próprios
noivos, o sacerdote apenas testemunha em representação da Igreja. O
casamento é consumado com a união íntima - e assim se torna claro
que esta união é também sacramental.
Pode parecer
simplesmente belo, e é. Todos já assistimos a casamentos e bem
pudemos ver como é veemente e profunda a promessa recíproca. Mas o
que é sobretudo abissal é o conteúdo das declarações dos noivos. Só
para Deus se pode prometer tanto. Por isso é que na Bíblia e na
Tradição sempre se usou a aliança dos esposos para simbolizar a
aliança com Deus e, inversamente, a aliança com Deus para simbolizar
a aliança conjugal. O cântico dos cânticos é a poesia desta analogia
mística.
No casamento
civil promete-se a mesma coisa, embora sem intenção sacramental
indissolúvel. Quais são os deveres dos cônjuges, neste contrato cujo
conteúdo é imposto por lei? São: os deveres de respeito, de
fidelidade, de coabitação, de cooperação e de assistência (veja-se o
art. 1672º do Código Civil). Portanto, não é possível contrair
casamento com um programa de direitos e deveres "à la carte". A lei
diz que "a vontade de contrair casamento importa aceitação de todos
os efeitos legais do matrimónio" (apenas é permitida alguma
liberdade negocial para as convenções antenupciais que se referem ao
regime de bens, mas ainda aí só dentro dos limites da lei).
5. Voltemos
agora à questão do adultério. O dever de fidelidade tem uma dimensão
positiva e uma dimensão negativa, como é facilmente entendido. E não
se limita à coabitação. Mas tem na coabitação um núcleo essencial,
que é o núcleo do próprio casamento. Ora, não é legalmente possível
ter duas fidelidades conjugais. Nem uma fidelidade com
"infidelidades". Não é possível contrair um casamento se existir um
casamento anterior não dissolvido (art. 1601º CC). Nem é possível
casar sem prometer fidelidade.
Sem a
fidelidade, o casamento seria menos fiável do que um contrato de
trabalho ou um contrato comercial de fornecimento exclusivo. Não
compreendo porque é que a mentalidade libertária, que parece entre
nós considerar-se bem-pensante, quer degradar esta dimensão
belíssima do casamento. As eventuais fraquezas e as faltas de
adultério não alteram a beleza e a nobreza da fidelidade. Só podem
ser a contraprova da necessidade da sua dignificação. Por isso, as
infidelidades não merecem ter aceitação jurídica, nem moral, nem
social.
6. Quanto às
sanções, uma coisa é o dever e a gravidade da falta, civil e
espiritual. Outra coisa é a pena de morte. Em rigor, a pena de morte
nunca é pedida pela justiça; nem pela humana, nem pela divina. E a
misericórdia vai ainda mais além do que a justiça, porque só terá os
limites que lhe são impostos por aqueles que a recusam
expressamente. Teologicamente, creio que é este o pecado contra o
Espírito Santo, o único pecado que não pode ser perdoado - porque
não quer ser perdoado.
No Evangelho,
Jesus decidiu a questão da punição do adultério de modo exemplar.
Fez reconhecer aos lapidadores que não tinham o direito nem a
autoridade moral para aplicar a pena de morte. Mas no fim disse à
mulher: vai e não peques mais. E o que vale para a mulher, vale para
o homem. No mesmo sentido, acerca do divórcio, deixou claro que as
leis antigas de Moisés, que o permitiam, levavam em conta "a dureza
dos nossos corações"; mas que não é esse o direito natural original.
Este pede a fidelidade para toda a vida.
7. Nós podemos
nem sempre ser capazes de corresponder ao que é justo e digno. É a
nossa desfalecência, que pede compreensão e remédio. Mas não é por
isso que a fidelidade matrimonial merece desprezo e o dever de
fidelidade conjugal é risível. É a própria dignidade pessoal de quem
casa, e daquele com quem casa, que sobre a promessa não cumprida lhe
pede vergonha, e não risos. Ninguém é obrigado a casar-se; mas, se o
fizer, tem de o fazer digna e seriamente. É esta a lei e são estes
os bons costumes.
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