Público - 23 Set 04
Aumento da Repressão nas Estradas Recebe Sinal Verde da
Assembleia
Por
RICARDO DIAS FELNER
A discussão do
novo Código da Estrada, ocorrida ontem na Assembleia da República,
mostrou que o Governo vai poder legislar, sem sobressaltos, sobre a
matéria. Mas pôs igualmente em evidência o desprezo geral dos
políticos pelo tema da sinistralidade rodoviária.
Prova disso é
que, embora teoricamente se tratasse do assunto do dia, assim que
terminou o período mais picante destinado ao debate da actualidade,
e o ministro da Administração Interna subiu à tribuna, assistiu-se a
uma autêntica debandada dos deputados.
De tal forma
que, a dada altura, quando Nelson Baltazar, do PS, pronunciava
palavras graves sobre o trágico acidente ocorrido recentemente em
Montargil, o PÚBLICO contabilizou apenas 33 pessoas nas bancadas
parlamentares (de um total de 230), boa parte das quais ocupadas em
conversas laterais, e indiferentes à descrição fúnebre do deputado
do principal partido da Oposição.
Verificou-se,
portanto, mais uma vez, um debate morno e frouxo sobre um tema
propalado, de forma recorrente, como o maior "drama nacional" e um
dos principais "desígnios de governo"; e confirmou-se que, à parte o
dramatismo posto em períodos eleitorais e discursos reactivos de
circunstância, os principais partidos com assento parlamentar não
têm divergências de fundo relativamente ao projecto do novo Código
da Estrada da Maioria - dando carta verde para que o Governo legisle
solitariamente sobre a matéria.
De facto,
ainda que a votação sobre o diploma de autorização legislativa - em
que o Parlamento delega no Governo o poder de elaborar a lei - só
ocorra hoje, mesmo os partidos da esquerda mais representados no
hemiciclo - o PS e o PCP - inclinavam-se ontem para anuir à
pretensão da Administração Interna em aumentar a repressão aos
condutores, já a partir de Janeiro de 2005.
Isso foi
afirmado ao PÚBLICO após a sessão, mas já perpassara nas
intervenções no plenário programadas pelas bancadas, quase todas
pouco entusiásticas e substanciais.
Governo combate "recursos dilatórios" às sanções
Daniel Sanches
teve, por isso, uma estreia pacífica na sala mais nobre da AR. O
ministro da Administração Interna - que praticamente se limitou a
repescar o projecto já delineado pelo seu antecessor, Figueiredo
Lopes, e pelo secretário de Estado Nuno Magalhães (que se mantém no
cargo) - repetiu as medidas mais fortes do novo Código, nomeadamente
o aumento "selectivo" das coimas no estacionamento em passagens de
peões ou nos passeios, para os casos de falta de uso, por parte de
menores e inimputáveis, de acessórios de segurança, e para os
condutores com taxas de álcool elevadas; e a tipificação de algumas
contra-ordenações como graves e muito graves (ver texto na página ao
lado).
Para além
destas considerações, que serviram sobretudo para contextualizar o
tema, Daniel Sanches focou o seu discurso sobretudo no combate aos
"recursos dilatórios" sobre as sanções - uma prática que na sua
opinião tem "proliferado" e que é responsável pela pouca eficácia da
aplicação da lei, sobretudo no que respeita à medida acessória de
inibição de conduzir.
Daí que uma
das grandes apostas do Governo - salientou - tenha que ver com
mudanças processuais, que incluem o aumento do período de prescrição
para dois anos (actualmente é de um ano) e a possibilidade de
cassação de carta de condução de forma administrativa e automática
(pela DGV), e não judicial (pelo juiz, com direito a defesa). Isto
significa que, uma vez que a lei entre em vigor, os condutores só
poderão recorrer da sanção "a posteriori", para os tribunais comuns,
e sem que durante o processo se suspenda a punição.
Oposição critica desprezo pelo transporte de crianças
A
admininstrativização da cassação da carta não foi, contudo, a
alteração a merecer as críticas mais contundentes por parte da
Oposição. A questão mais criticada foi, afinal, o facto de o Governo
não ter incluído no projecto-lei a obrigatoriedade de os transportes
colectivos de crianças terem sistemas de retenção de segurança.
No coro
entoado pelos partidos da esquerda, Luísa Apoloni, do partido "Os
Verdes", foi a voz mais exaltada. A deputada lembrou que um
projecto-lei do seu partido sobre o assunto já havia sido aprovado
há dois anos, tendo sido também finalizada a discussão na
especialidade. E lembrou que o Governo, de então para cá, não
apresentou a sua proposta, "por duas vezes anunciada".
Daniel Sanches
defendeu-se, garantindo que, no dia 24 de Agosto, o Governo deu
entrada na Assembleia mais um pedido de autorização legislativa
destinado especificamente à segurança das crianças em transportes
colectivos.
De resto, o
PS, através de Luís Miranda, questionou ainda o ministro sobre a
forma como irá ser exercida na prática a fiscalização do Código da
Estrada, preocupação reiterada por Rodeia Machado, do PCP. Os
comunistas mostraram-se também descontentes com o recurso ao
instrumento da autorização legislativa, mas, tal como os
socialistas, deixaram mais perguntas do que propostas concretas a
contrapor às soluções do Governo.
As críticas
mais veementes acabaram mesmo por vir da bancada do Bloco de
Esquerda, que aliás deverá abster-se na votação de hoje. João
Teixeira Lopes afirmou que o novo Código acentua a repressão em
detrimento da prevenção e iliba o Estado, responsável pela
construção de estradas perigosas e pela sinalização rodoviária
deficiente, no problema da sinistralidade.
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