Público - 24 Set 03

Sem Nome
Por JOAQUIM FIDALGO

Não, não gosto muito de anónimos. A bem dizer, acho que só gosto dos alcoólicos. Dos Alcoólicos Anónimos (AA), entenda-se. E não deixa de ser curioso que, chamando-se assim, eles são tudo menos anónimos. São o contrário. Já todos vimos, em filmes por exemplo, que o ponto de partida de um novo membro desta cadeia de ajuda mútua para quem sofre de dependência do álcool é, exactamente, a sua apresentação com nome próprio: "Boa noite, chamo-me Fulano e sou um alcoólico". Tem tudo a ver, não é? Olhar-me ao espelho, assumir-me como doente e ser capaz de o fazer diante de outros como eu, é, apesar de custoso, o passo necessário para encarar de frente o problema e começar a lidar com ele. Escondê-lo sob o manto do anonimato é prolongá-lo, alimentá-lo, enganá-lo - o mesmo é dizer, enganar-me a mim. E isso até é possível, porque ninguém vê, porque ninguém sabe que(m) sou eu.

A Net é um meio incrivelmente fácil para a circulação anónima (ou, o que dá quase no mesmo, para a criação de identidades falsas). Com o fenómeno recente e por estes dias muito falado dos "weblogs" - páginas pessoais que
podemos criar em cinco minutos, de borla, e que ficam no imediato disponíveis para todo o mundo ligado à rede, seja o vizinho do lado ou um cibernauta das Ilhas Fiji -, a tentação do anonimato também fez das suas, claro. Há muitos "blogs" (como lhes chamam na gíria) sem nome por baixo, falando disto e daquilo, opinando sobre esta ou aquela polémica, comentando este ou aquele tema. Mas nem todos são inofensivos ou lúdicos. Há os que, precisamente a coberto do anonimato, se dedicam (com óbvias intenções...) a acusar pessoas e entidades, a insinuar crimes, a denunciar comportamentos secretos de A ou B, enfim, a dizer o que querem de quem muito bem lhes apetece. Fazem-no nas calmas, lá está, porque ninguém sabe quem são os autores, ninguém vê, é às escondidas.

Infelizmente, estes anónimos acabam volta e meia por ter um prémio: põem outros a falar do que eles lançaram para a rede, a discutir se o que dizem é ou não verdade, a passar as "informações" para terceiros. Devem rir-se de
gozo, os tais autores anónimos, com o que conseguem à custa de tão primário expediente. Devem rir-se de gozo com a projecção que alcançam, quase como se fossem gente séria a discutir problemas sérios com quem navega na Net. Até chegam a dar entrevistas (anónimas!). Afinal, aquilo compensa. E enquanto compensar, haverá sempre mais alguém para seguir aquelas pisadas e se esconder também atrás de uma árvore desta vasta floresta para atirar pedras a quem queira. Porque ninguém vê, ninguém sabe quem é.

Bem diferente seria, quero crer, se estas diversões gratuitas à custa do bom nome de terceiros fossem liminarmente ignoradas (pois não é possível, e oxalá nunca seja, proibi-las por decreto ou por polícia), e nunca fossem reproduzidas, discutidas, comentadas, nada. Que nunca nos tornássemos cúmplices delas, que é o que sucede quando lhes damos eco, mesmo que seja para contestar o que elas dizem. Que só o silêncio, um silêncio total, as acolhesse. Como se não existissem, já que querem existir sem nome.

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