Público - 22 Set 03
Santos e Pecadores
Por GRAÇA FRANCO
O que tem em comum a última nota pastoral da Conferência Episcopal e as
conclusões do relatório encomendado pelo Governo ao McKinsey Global
Institute sobre a competitividade? Aparentemente nada e, substancialmente,
tudo. Os dois textos identificam a necessidade urgente de uma verdadeira
revolução cultural na actuação de todos (enquanto Estado) e cada um de nós
(enquanto cidadãos), traduzido no fim do pacto de silêncio e tolerância
com um sem número de ilegalidades (da baixa à falência fraudulenta, da
fuga ao fisco à corrupção dos fiscais, da burocracia de empata às luvas
para o desempata) aldrabices que minam a vida económica e marcam o nosso
comportamento social.
Comportamentos que passam por um culto exacerbado e egoísta do interesse
individual, em clara sobreposição ao interesse colectivo, quer se trate da
prática nos negócios, ou da condução irresponsável nas estradas, ou do
desrespeito pelos direitos ambientais das gerações futuras. Vantagem para
o documento dos Bispos que não recearam chamar as coisas pelos nomes,
chamando-lhes "pecados sociais", enquanto o texto dos consultores se fica
por um eufemístico apelo ao urgente combate à "informalidade".
Para uma sociedade que foge em todas as áreas da simples noção de
"pecado", o último texto da conferência episcopal é quase chocante mas,
terá seguramente a vantagem de despertar o povo (pelo menos o chamado povo
de Deus!) para uma realidade que todos conhecem e demasiados toleram.
O documento da Igreja tem o mérito adicional de não se esgotar na análise
das causas da nossa falta de competitividade e atraso económico buscando a
raiz transversal de todos esses comportamentos que acabam por minar a
nossa vida social. Do culto dos egoísmos individualistas, aos excessos
consumistas geradores de exclusão, passando pela exagerada comercialização
do fenómeno desportivo. Sem esquecer "uma certa mentalidade mercantilista"
na saúde geradora da falta de respeito pelo doente, a responsabilidade
comum pelos impostos e a necessidade de uma educação ao serviço de todos.
Na linha da velha doutrina social da Igreja recorda-se o primado da pessoa
sobre as instituições; a busca do bem comum como meta da vida social, a
solidariedade como virtude essencial.
Para os não crentes valerá talvez mais a análise "quantitivista" do
Governo, ansioso por encontrar um número capaz de credibilizar a
necessidade urgente de reacção. Sabendo-se que, santos da casa não fazem
milagres, compreende-se a vantagem da escolha do auditor externo, à FMI.
Opção não inovadora (quem se lembra do relatório Werner - ou seria Weber?
Já nem sei!) dos idos de setenta sobre o futuro da indústria têxtil, ou do
relatório Porter de há apenas uma década? Todos contratados na esperança
de minorar as resistências internas... porque a mudança nunca será
indolor! Que o digam os espanhóis que já passaram esse cabo das Tormentas.
Os dois textos fazem por isso o pleno da sociedade e, queira Deus, nos
façam colectivamente mudar. Ou como os bispos anseiam, facilitem uma
desejável onda de " paixão por um Portugal melhor!" devolvendo-nos, desde
já, a auto-estima, sem mesmo esperar por 2010!
Se assim for... só por isso terá valido a pena (re)descobrir o óbvio
(porque é da descoberta do óbvio que trata o relatório McKinsey, pelo
menos na parte conhecida das suas 700 páginas). Com a simples virtude de,
desta vez e ao contrário das originalidades do anterior relatório Porter,
as conclusões, se limitarem à legitimação de uma série de medidas
pré-enunciadas. Da vantagem da liberalização do comércio a retalho dando
cobertura aos protestos das grandes superfícies em lista de espera, à
liberalização do mercado de arrendamento...
Só não fica claro se no turismo, onde o projecto de Vilamoura é
apresentado como exemplar, a ideia é "proteger" a pretexto de garantir uma
subjectiva qualidade ou liberalizar...
A coincidência entre o texto episcopal e as conclusões do relatório em
matéria de "informalidade" foi notada por uma empresária, logo durante a
apresentação do estudo ainda no Centro Cultural de Belém, e acabou por
embaraçar o próprio Durão Barroso, forçado a explicar, num curto improviso
durante a sua intervenção, a génese académica do termo.
O que o primeiro-ministro não disse, mas todos suspeitamos é que o termo
académico acaba por esconder sob o chapéu da "racionalidade dos agentes
económicos" todo um cardápio de desculpas para o incumprimento das regras
do jogo, acabando em boa parte por justificar a actual complacência com o
fenómeno. Exactamente o que conviria eliminar!
De acordo com a análise dos consultores americanos, por cada hora de
trabalho de um português a nossa riqueza colectiva aumenta escassos 16
euros enquanto "um europeu médio consegue produzir quase 32 e um belga 36.
E
desses 48 pontos percentuais que nos separam da média 30 por cento é
explicada pela dita "informalidade", só 24 por cento pela burocracia nos
licenciamentos e outras falhas no chamado "ordenamento do território", e
afinal só escassos 13 por cento pela célebre legislação laboral (tanto
quanto as falhas na regulamentação dos mercados e produtos).
Descontado o "economês", o texto diz preto no branco o que em rigor há
mais de 20 anos economistas, associações patronais, sindicatos e
sucessivos Governos conheciam. A saber: boa parte da falta de
competitividade da nossa economia se fica a dever à balda que nos
caracteriza. Isso justifica, a dificuldade de Miguel Cadilhe em cativar
novos e bons investidores estrangeiros para o nosso mercado. Habituados a
cumprir as regras do jogo, eles, são os primeiros a não conseguir
sobreviver na selva interna vendo os seus lucros presa fácil do desenrasca
nacional.
"Eles" e os muitos empresários cumpridores (aqueles que não ficam de
cabelos em pé quando se lhes fala do fim das despesas confidenciais e
acham bem que se ponha quanto antes fim ao sigilo bancário para combater a
fuga e a fraude fiscal).
Porque o comportamento informal tem muitos nomes feios: corrupção,
compadrio, fuga, fraude, e coisas quejandas... E não convém varrê-los para
debaixo do tapete sob pena de não ter valido a pena gastar tempo, dinheiro
e energia a fazer mais um estudo. Porque por muito bom que este estudo
seja se "for mais um" será péssimo! E por muito mau que possa ser "se for
o último" será óptimo!
2,94 qualquer coisa...
Esclarece-me a equipa das Finanças que os mágicos 2,94 nunca constaram do
reporte como tal, resultando do mero exercício jornalístico de divisão
entre duas parcelas constantes do documento. Pode sempre o autor do
cálculo levá-lo às milésimas, explicam. Pois pode! Sendo assim, o caso
muda de figura e a minha análise, reconheço humildemente, torna-se nesse
ponto injusta e exagerada. Eu nunca iria além das décimas... Mas que me
perdoe a ministra das Finanças. É caso para dizer que paga o justo pelo
pecador! É tal a obsessão contabilística do Governo que nem por um segundo
duvidei que o número constasse exactamente assim de algum ponto do reporte
tal a veemência com que o vi referido sem desmentido. Não consta, antes
assim... Peço desculpa. |