Público - 1 Set 03
Praxes: Um Ano de Lutas
Por TIAGO GILLOT
Terminou na semana que passou a odisseia de Ana Santos, estudante da Escola
Superior Agrária de Santarém (ESAS), vítima das praxes no início do presente ano
lectivo. Depois de vários meses de angústia e incertezas quanto ao futuro, Ana
conseguiu finalmente fazer valer os seus direitos, garantindo uma vaga num curso
semelhante àquele que frequentava antes de ser atropelada pela "tradição".
No entanto, os acontecimentos dos últimos meses devem merecer a reflexão de
todos, agora que a sociedade portuguesa parece acordar para a realidade que se
vive, ano após ano, no interior das faculdades um pouco por todo o país. Para o
Movimento Anti-"Tradição Académica", que há já dez anos se empenha em discutir
seriamente esta temática, o que se passou tanto em Macedo de Cavaleiros (por
duas vezes, que se saiba!) como em Santarém não é novidade: a praxe goza de
total impunidade, sendo mesmo valorizada por quem tem responsabilidades ao nível
do ensino superior.
Juntamente com as outras vertentes da dita "tradição académica", ela cumpre um
folclore que é bem do agrado de quem pretende evitar um ambiente de igualdade,
sentido crítico e reflexão colectiva no seio dos estudantes e restante
comunidade escolar. Assim, o pretenso espanto e o repúdio envergonhado que se
notou em alguns discursos oficiais não pegam junto de todos quantos frequentam
diariamente os estabelecimentos de ensino. Teria sido bastante mais útil
que, tanto ao nível do ministério como das direcções das escolas envolvidas,
tivesse havido um real esforço no sentido de evitar estes acontecimentos, por um
lado, e conseguir uma actuação rápida e consequente, por outro. Em vez disto, o
ministério optou por uma prática de arrastamento dos processos, ao mesmo tempo
que ia fazendo promessas de resolução do problema, em resposta à indignação
generalizada da sociedade portuguesa.
Já a direcção do Piaget de Macedo de Cavaleiros e o Conselho Directivo da ESAS
escolheram a via do confronto com os agredidos e apoio aos agressores. A este
respeito, vale a pena recordar que Ana Sofia Damião - estudante do Piaget - teve
direito a uma sanção de carácter idêntico à dos seus agressores por parte da
escola (castigo original para premiar a queixa que efectuou junto daquela
instituição!).
Do mesmo modo, o sr. Henrique Soares Cruz - presidente do Conselho Directivo da
ESAS - rapidamente reagiu aos acontecimentos de Santarém afirmando que no seu
tempo de estudante também passou pelo mesmo e até achou piada, o que atesta bem
qual a filosofia que preside ao seu mandato e revela como está longe de
compreender que deve gerir os interesses de todas as pessoas que dirige e não
apenas daqueles que pensam como ele próprio.
No entanto, deve agora salientar-se o que de mais relevante fica relativamente
ao que se passou nos últimos meses: a persistência e a coragem na luta pelo que
temos direito acabam por obrigar os mais "preguiçosos" a cumprir as suas
responsabilidades. O facto de vários estudantes, apesar das inúmeras pressões a
que foram sujeitos, terem levado até ao final as suas queixas e exigido os seus
direitos deve servir-nos a todos de exemplo.
Mesmo assim, os acontecimentos de Macedo de Cavaleiros ainda não mereceram a
atenção exigível - recorde-se, por um lado, que Ana Sofia Damião foi
literalmente expulsa da instituição e os seus agressores continuam impunes; e,
por outro, que nada se sabe acerca das bárbaras agressões sobre outros quatro
colegas seus durante o "tribunal de praxe".
Resta-nos a confiança de que os tribunais saberão avaliar o que realmente se
passou em todos os episódios que passaram a ser de conhecimento público, já que
sobre todos os outros apenas se pode esperar que não se voltem a repetir ou que
se criem finalmente as condições para que possam ser avaliados sem receios.
Agora que um novo ano lectivo está à porta, a violência das praxes estará
novamente aí para quem a quiser ver. Ela demonstra-se, não só ao nível das
agressões físicas, mas também do ponto de vista ideológico: a coacção
psicológica, a transmissão de valores conservadores e retrógrados, a tentativa
de hierarquização dos estudantes no seio da sua comunidade, a visão elitista que
justifica o ritual ou a glorificação da obediência cega e acrítica, por exemplo.
O que está em jogo é "apenas" que tipo de ensino queremos construir e escolher:
uma escola a várias cores, onde as opiniões individuais possam contribuir para
uma discussão saudável entre todos ou o cinzentismo que esmaga qualquer
diferença. Uma coisa os novos alunos saberão este ano: vale a pena dizer não!
Membro do Movimento Anti-"Tradição Académica"

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