Público - 4 Set 03
Emergência Infantil
Por PEDRO STRECHT
Dedicado a Richard Rollinson, um exemplo entre muitos que se destacam no
trabalho com crianças vítimas de múltiplas privações emocionais
"Emergência infantil". Este era o título de um recente editorial de
Eduardo Dâmaso, publicado neste jornal há poucos
dias. Ele traduz a imperiosa necessidade de
repensar todo o sistema de apoio a crianças e adolescentes em
risco, sobretudo daqueles que necessitam de uma institucionalização
temporária ou definitiva, por vários factores de descompensação
sócio-familiar.
De verdade, Portugal continua a apresentar um número muito grande de
rapazes e raparigas que vivem em instituições, quer
sejam estatais, quer funcionem com o registo
privado de solidariedade social (IPSS). Os dados de que vamos
dispondo variam, mas não andaremos muito longe da verdade se
falarmos num número próximo dos 20 mil, o que desde
logo parece exorbitante.
Por outro lado, parece absolutamente evidente que esse número pode ter
tendência a aumentar nos próximos anos, uma vez que os indicadores
de risco psicossocial que existem continuam a
colocar-nos na cauda da União Europeia. Aliás, quem
está no terreno nota no dia-a-dia a crescente necessidade de
intervir em grupos de rapazes e raparigas cujo destino pessoal e
social parece precocemente afectado por múltiplas
privações emocionais.
Este é o universo de crianças e adolescentes em grave desamparo social,
que obviamente correm o risco de se tornarem na
população que abandona a escola, que é explorada em
várias formas de trabalho infantil, que segue destinos
trágicos como a prostituição, ou que ainda cedo embarca no consumo
de drogas e no seu tráfico, arriscando a fazer da
delinquência a forma possível de expressar o seu
mal-estar, engrossando assim a enormidade de jovens detidos
que temos e que enchem as respostas possíveis que a justiça dá: os
centros educativos do Instituto de Reinserção
social, IRS, ou as prisões.
Vêm habitualmente dos bairros e zonas degradadas dos grandes centros
urbanos e seus subúrbios, e vivem panoramas de
total desintegração familiar. Ao invés do que se
passava até há umas dezenas de anos, o seu paradigma mudou:
não são somente os pobres, órfãos de pai e ou mãe a quem bastava
responder com um modelo de amparo social
caritativo, vulgo, dando casa, comida, roupa e
educação. Essa criança-padrão já não existe. A realidade há muito que é
outra, embora as respostas maioritárias se concentrem nesse modelo
ultrapassado. Hoje, esse conjunto de rapazes e de raparigas (são
sempre mais os rapazes do que as meninas, por
várias razões e condicionantes) podem não ser tão
pobres economicamente como dantes; os seus pais existem, embora não
consigam exercer adequadamente a sua tarefa parental nem se quer se
responsabilizarem por ela. São os órfãos de pais vivos, que nunca
conheceram os progenitores que cedo abandonaram o
lar, ou aquelas crianças cujos pais
estão detidos, ou exercem a prostituição, ou se mobilizam apenas para o
consumo de drogas ou ainda os que já sofrem as consequências
activas disso mesmo, estando doentes com sida ou
detidos em penas habitualmente longas. Se visitarem
os lares da Santa Casa da Misericórdia, é disto que encontram. Se
forem a centros de acolhimento da Segurança Social, o panorama não
muda. Se, por último, conhecerem a população de
centros educativos do IRS vão ver como são os
mesmo, apenas uns passos à frente na sua degradação trágica de vida.
Para além da tendência crescente deste número de crianças e adolescentes,
escasseiam as respostas possíveis. Qualquer técnico que trabalhe na
área sabe da dificuldade em fazer uma colocação
institucional de um destes meninos ou meninas. Se
hoje quiser obter uma vaga, dir-lhe-ão em várias
portas a mesma resposta: "Não temos." Então se falarmos de rapazes de
idades compreendidas entre os 10/12 anos e os 16
anos, missão (quase) impossível! É que se para os
mais pequenos a tolerância e a capacidade de resposta ainda
existe, para os maiores, já adolescentes, é nítida a enorme
dificuldade em encontrar quem se sinta motivado
para aí trabalhar, numa realidade que podemos
designar por impressionante.
E depois há o problema do próprio trabalho institucional. O que se passa
por esse país fora em lares, centros de
acolhimento, instituições? Salvo algumas honrosas
excepções, o panorama é desolador. Pequenos locais habitualmente em
sobrelotação, com recursos económicos parcos, quando não
miseráveis, pessoal técnico diminuto, mal pago e
com pouca qualificação académica para o cargo (não
há formação nem reciclagem eficaz), com uma taxa de mudança e ausência
muito forte, dadas as precárias condições de trabalho e o enorme
desgaste
emocional.
Acresce ainda que o modelo de resposta institucional é executado com muito
pouca base científica, de uma forma quase sempre empírica, onde
existe boa vontade (mas, cada vez mais, isso apenas
não chega!), e onde a actuação se reduz
habitualmente a um esquema comportamental - punitivo que em nada se
rende a uma visão mais compreensiva, reconstrutiva.
Dos modelos que conhecemos, gostaria de destacar o baseado em intervenções
psicodinâmicas que procuram olhar a criança e o adolescente no seu
todo evolutivo, nas suas múltiplas ligações entre
passado, presente e futuro, e na perspectiva de
ligação entre criança, família e meio social.
Pessoalmente, desde há quase uma dezena de anos que visito em Inglaterra
instituições desse tipo, cujo exemplo de investimento em infâncias
de risco é bem o espelho de um país que se preocupa
em defender os mais novos. Dentro desse exemplo, é
impossível não destacar a Mulberry Bush School, uma
instituição situada perto de Oxford, que presta apoio residencial e
educativo a 36 crianças de ambos os sexos, e que foi fundada em
1948 por Barbara Dockar-Drysdale, discípula do
famoso pedopsiquiatra Donald Winnicott, e de que
foi director, até há bem pouco tempo, Richard Rollinson,
que já várias vezes tem estado entre nós, em visitas pessoais ou em
conferências.
Por último, as respostas alternativas à institucionalização são ainda
frouxas. Da aplicação da nova lei de adopção espera-se uma boa
contribuição na possibilidade de filtro de tantas e
tantas vidas de risco. Mas é certo que, mesmo
funcionando bem, não chegará. Também as famílias de acolhimento
são poucas e com apoios diminutos. Restam, como se disse, grupos de
pessoas que fazem desta luta uma bandeira e que nas
suas instituições, nos seus
locais de trabalho por todo o país, tentam ainda ajudar a esboçar sorrisos
neste grupo de esquecidos.
Nesta área, Portugal tem muito a favor: uma espontaneidade afectiva enorme
do seu povo, uma boa capacidade de mobilização por causas, um
interesse inato pelos mais novos. Por que esperamos
tanto, tanto, sem pensar e sem agir? Por que será
sempre tarde? Por que ouviremos demasiadas vezes as
sirenes da emergência a tocar? É tempo de ser realista e olhar de frente
um problema que, esquecido, não terá fim. É tempo
de acordar!
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