Diário de Notícias - 15 Set 03
A indigência cultural
João César das Neves
Que diria de alguém que, apaixonado pela literatura e artes plásticas,
desprezasse a música, julgando-a sons sem sentido que não se podem ver ou
agarrar? Um desequilíbrio semelhante está na elite intelectual europeia
que, no meio de grande elevação artística e intelectual, menospreza a
religião por não a poder ver ou tocar e não lhe entender o sentido. E
ainda considera esta redução como um progresso cultural! Que diríamos de
alguém que se recusasse a sair da cidade porque no campo não há estradas e
chão empedrado? Ou detestasse a noite por falta da luz do sol? A elite
europeia faz tolice equivalente ao esquecer a vida depois da morte, o Céu
e o Inferno por ser diferente do que conhece. E ainda considera essa
limitação como um avanço espiritual!
A Europa nos últimos séculos foi dominada por uma seita religiosa, uma fé
ateia que decretou que Deus, a alma, a vida eterna não existem, reduzindo
o ser humano a um animal com raciocínio. E isto sem qualquer fundamento
científico ou filosófico, fora do seu fanatismo. De facto, a ciência nada
sabe do que há depois da morte e demonstrar a inexistência de Deus é uma
impossibilidade lógica, tal como uma formiga não pode infirmar as
galáxias. Mas a doutrina impôs-se com a arrogância das seitas nascentes.
Esta religião anti-religiosa, ao recusar o âmago mais central da realidade
social, teve consequências desastrosas para a Europa. O novo dogma rompeu
com a sua própria herança civilizacional, que tal como todas as demais
fora amassada no interior de uma religião. Esta ruptura e transformação
foi terrível. Ela só tem paralelo na vitória do Cristianismo sobre o
Paganismo nos últimos séculos do Império Romano. Com duas diferenças
principais.
A primeira é que os cristãos eram do povo e conquistaram as elites,
enquanto a nova religião vem da elite e nunca convenceu o povo. A segunda
é que o Cristianismo substituiu um corrupio de cultos; mas quando a
doutrina ateia
tentou colocar algo no lugar do que rejeitava, assistiu-se a um corrupio
de teorias, doutrinas, escolas, tendências: Racionalismo, Iluminismo,
Utilitarismo, Marxismo, Positivismo, Nazismo, Existencialismo... Cada uma
elevando-se nos escombros da anterior para ruir em seguida.
Hoje, todas essas visões sobrevivem em pedaços ideológicos, retalhos
doutrinais, farrapos intelectuais, uns ao lado dos outros no meio da maior
confusão. A única coisa em comum é o desprezo pelo Cristianismo, a base da
cultura que recusaram. Esse desprezo é baseado em ignorância histórica e
preconceito intelectual. Sem profundidade espiritual, os argumentos
principais para condenar a Igreja são, por exemplo, as cruzadas e a
Inquisição, realidades que aliás desconhecem. Mas que se diria de alguém
que acusasse hoje um povo, um exército, uma instituição por acontecimentos
dos séculos XII ou XV? E mesmo, na parte em que é verdade, que diriam de
alguém que considerasse falsa a física nuclear por causa do uso dos seus
resultados?
Assim se chegou à indigência cultural em que vivem os europeus, no meio de
uma sociedade que não entendem, como estrangeiros na própria casa. Olham
os seus valores, história e tradição da mesma forma que os japoneses ou
sumérios; contemplam os seus livros, pinturas, ritos, templos como lendas,
delírios, tolices. No mundo global, a Europa vive a indigência e a
desorientação. E julga-se em progresso cultural! |