Correio da Manhã - 16 Set 03
Ensino (início do ano lectivo 2003/04) - Entrevista ao ministro da
Educação
DAVID JUSTINO: PROFESSORES SEM AULAS CUSTAM 250 MILHÕES David
Justino, ministro da Educação, quer reduzir os horários-zero. É que há
cada vez menos alunos para tantos docentes. O que faz com que muitos
professores não tenham turmas para leccionar. Justino traça um retrato da
educação e define as principais metas. Quanto ao orçamento para este ano,
diz que não vai haver "tesouradas".
Marta Vitorino
David Justino
- Correio da Manhã: Como perspectiva este novo ano lectivo?
- David Justino: Com confiança e optimismo.
- Vai haver cortes no orçamento da Educação?
- Cortes? Não... Aqui não há tesouras.
- Vai ter mais dinheiro?
- Neste momento não posso dizer.
- Qual seria o orçamento desejável?
- O orçamento é um instrumento fundamental, mas não pode ser a
política. Há determinadas pessoas, nomeadamente políticos responsáveis,
que julgam que a qualidade pedagógica não tem a ver com a administração.
Mas dificilmente teremos ganhos de qualidade se não organizarmos melhor o
sistema. Todas as tentativas de reorganização do sistema falharam devido à
sua desorganização. É uma espécie de folga que existe no motor, por onde
sai o óleo e a gasolina.
- O problema é do veículo ou do condutor?
- Claramente do condutor, que não fez as revisões necessárias. Os
principais responsáveis são os diferentes governos. Muitas vezes os
ministros da Educação não têm condições políticas para levarem até ao fim
as medidas que defendem.
- Neste momento há condições políticas?
- Sim. Mas talvez tenhamos que olhar para aqueles que dificultam e usam
a Educação como uma arma de arremesso política. A ideia que se quer
transmitir da Educação é que não é possível reformá-la. O papel do
ministro é resistir até à última para não se desviar do seu percurso.
- Que frutos espera recolher da estratégia que traçou?
- Os meus objectivos são relativamente simples: baixar o insucesso
escolar e aumentar o nível de desempenho. Um objectivo mais específico é o
aumento da escolaridade obrigatória para 12 anos e a reorganização dos
ciclos. Em dez anos reduzimos de 12,5% para 2,7% a taxa de abandono. A
meta que propus para 2010 é atingir 1%. No Secundário, onde temos uma taxa
de abandono de 45%, quero atingir os 25%. Estamos a criar um conjunto de
condições para que a inovação e qualificação pedagógica possam ter
resultados, quer no que diz respeito aos agrupamentos, quer a nível da
gestão, organização do calendário escolar, revisão curricular... Temos
mexido em quase tudo.
- O abandono escolar está relacionado com a entrada no mercado de
trabalho. Muitas vezes são os pais a 'empurrar' os filhos...
- É mais compreensível um pai com rendimentos baixíssimos obrigar o
filho a trabalhar do que a situação em que alguém utiliza o filho para
fazer telenovelas, participar em concursos de televisão ou alta competição
desportiva.
- Mas um maior empenhamento na escola não trará consequências a nível
desportivo? Se nestes Mundiais de Atletismo 'brilhámos' pela pobreza de
resultados, então daqui a dez anos não conseguiremos os mínimos para
participar...
- Só tenho pena que não haja um Mundial de Educação! Se Portugal perde
com a Espanha e Turquia em futebol, toda a gente acha um escândalo; mas
não acham escandaloso os maus resultados que obtemos a nível da Educação.
A alta competição irá beneficiar se os jovens fizerem mais desporto
escolar. Estamos a fazer um esforço enorme nessa matéria. Um grande atleta
tem de ser, acima de tudo, um grande homem. Não faz sentido sacrificar a
escola para fazer grandes atletas.
SALÁRIOS DOS PROFESSORES
- Como encara a classe docente?
- Não sou a pessoa indicada para falar porque também sou professor. Mas
houve entradas massificadas dentro do sistema e os níveis de selecção
baixaram. Isso conduziu a recorrer a pessoas que, eventualmente, andavam
mais à procura de um emprego do que de uma profissão. O Estado e as
escolas têm o direito de poder escolher os melhores.
- E como se faz essa triagem?
- Logo se vê...
- Os professores são bem pagos?
- Tudo é relativo... Os indicadores são elucidativos: comparativamente
com os outros docentes da Europa, os professores portugueses ganham muito
acima do meio da tabela.
- Acha que mereciam ganhar mais?
- Relativamente ao nível de riqueza do País, acho que não. O que se
passa é que trabalhe-se muito ou pouco ganha-se o mesmo desde que se
esteja no mesmo escalão. É uma injustiça.
- Vai ser reparada?
- Vamos tentar, dentro dos quadros legais.
- Quanto custam ao Ministério os professores com horários-zero?
- Se somarmos as dispensas de componente lectiva, requisições e
destacamentos, os números são de 200 a 250 milhões de euros. O ano passado
os horários-zero eram 6000 e as despensas eram cerca de 4000.
- Ou seja, paga-se 250 milhões de euros a professores que não dão
aulas?
- É verdade. Mas estamos a reduzir os horários-zero. Perguntam porque é
que há professores no desemprego, mas eu não posso admitir
indiscriminadamente, porque assim iria aumentar o número de horários-zero.
Isso não quer dizer que não tenhamos de fazer admissões, pois há grupos
carenciados.
- Uma das suas bandeiras é a do recrutamento de docentes segundo a sua
competência e não apenas com base na classificação ou anos de serviço. Em
concreto, o que pensa fazer?
- Até ao final deste ano o diploma sobre a revisão da carreira docente
e lei da autonomia, gestão e financiamento das escolas vai estar pronto
para ser negociado. Temos de reconhecer que os professores têm um papel
fundamental. Os professores e os alunos são os actores principais no
palco. Em primeiro lugar, temos que salvaguardar interesses e direitos
adquiridos; em segundo lugar, tentar que se reconheça o mérito para que
não seja tudo nivelado pela mesma bitola.
- Vamos ter gestores profissionais nas escolas?
- Vamos ter gestão profissional. Há um conjunto de competências e
procedimentos que devem ser desempenhados por quem tem não só as
habilitações, mas também as competências e experiência. Será que eu vou
encontrar fora da escola melhores gestores do que aqueles que já lá estão?
Duvido. Conto com uma grande parte de professores que têm essa
experiência. É muito importante que as escolas também possam funcionar por
objectivos e definir metas.
- Que tipo de metas?
- Uma, pode ser a redução da taxa de insucesso e abandono escolar.
Outra, pode passar por adequar a estrutura de oferta de cursos
relativamente às actividades económicas da zona.
- O financiamento vai estar dependente do atingir essas metas?
- Claro! Se eu entendo que, por exemplo, uma escola quer avançar com um
curso sobre indústria alimentar, tenho que dotar essa escola de meios
financeiros.
- "Estas são as casas a que chamamos bibliotecas. São casas de
liberdade, com janelas abertas ao mundo". Conhece este texto?
- Claro, fui eu que o escrevi.
- Mas há escolas onde os alunos não podem consultar livros porque não
há pessoal na biblioteca...
- Isso aí... Reconheço que, muitas vezes, por falta de dinheiro, há
dificuldade em recrutar pessoal. Temos que recorrer aos expedientes, como
os créditos horários.
- Mas as escolas queixam-se da redução da bolsa de horas...
- Pode haver um caso ou outro...
- Insisto: e se um aluno quiser consultar um livro e não houver ninguém
para abrir a biblioteca?
- Vamos lá a ver uma coisa. Até este ano aumentou o número de docentes
e não docentes, mas o número de alunos tem vindo a diminuir. Há aqui
qualquer coisa que não funciona bem. Há escolas onde os professores estão
mal aproveitados quando, se calhar, ao lado, temos outras com docentes
hiper-aproveitados.
- Está contente por ser ministro da Educação?
- Sim. É um desafio. Toda a gente me diz que o Ministério da Educação
tritura os seus responsáveis, mas eu não me sinto triturado.
"MANUAIS ESCOLARES SÃO CAROS"
- Os manuais escolares são caros?
- Acho que sim. Vamos tentar, juntamente com os editores, baixar os
custos de promoção por forma a transferir os ganhos e, assim, baixar os
preços. Já existem pontos de consenso.
- É possível manuais mais baratos já no próximo ano?
- Vou fazer por isso. Este ano já conseguimos estabelecer um tecto.
- Justifica-se a profusão de manuais para a mesma disciplina?
- Não posso proibir nenhuma editora de fazer quantos manuais entender.
Isso é problema da editora. Mas se as editoras estão dispostas a arriscar
com este tipo de gastos, então é porque têm margens de lucros.
- Para quando um selo de qualidade?
- Não sei se será a melhor solução. O que é necessário é fazer a
avaliação, nem que seja tornar mais transparentes as opções das escolas. O
facto de haver um escrutínio é já um indicador de qualidade.
"DOU A PAPA E MUDO-LHE A FRALDA"
- Tem filhos em idade escolar?
-Tenho um que ainda não entrou na escola e outro que já saiu .
- Que idade tem o filho mais novo?
- Quinze meses. Chama-se João David.
- Como é o ministro da Educação como pai?
- Gostava de ser melhor pai. Gostava de ter mais tempo para os meus
filhos.
- Brinca com o seu filho mais novo?
- Sim, com os brinquedos próprios da idade. Mas acima de tudo gosto de
poder senti-lo... A forma como ele descobre as coisas, a forma como se
exprime...
- E também lhe dá banho, papa e muda a fralda?
- Faço tudo, tudo. Dou a papa, banho e mudo-lhe a fralda.
- Ajuda em casa?
- Bastante.
- Cozinha?
- Algumas coisas... Arroz de marisco, borrego...
- Gosta de vinho?
- Sim, principalmente tintos.
- Gosta de ler?
- Neste momento estou a consultar o Dicionário Houaiss. De vez em
quando faz-me bem ler um pouco de poesia. Tenho dois poetas preferidos:
Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner; e um terceiro poeta,
considerado 'maldito', que é Al Berto.
- Qual o seu clube?
- Sou sócio de mérito da Associação Desportiva de Oeiras e simpatizante
do Benfica.
- Eleições no Benfica?
- Não me pronuncio.
- Não fala do seu Benfica?!
- Tem os mesmos problemas do futebol português. Eu gosto de ver
futebol. O último jogo a que assisti foi o dos sub-21, com a Turquia. O
problema não é a falta de técnica nem a disciplina táctica; é a
consistência, ou seja, um fio de jogo. Elogio o trabalho do Mourinho no
Porto, que pegou em jogadores que não eram grandes estrelas e conseguiu
transformá-los.
PERFIL
José David Gomes Justino nasceu em Oeiras, a 29 de Janeiro de 1953. Foi
naquela vila que estudou. Fez o antigo 7.º ano no então denominado Liceu
Nacional de Oeiras. Em 1976 licenciou-se em Economia, no Instituto
Superior de Economia. em Lisboa. Aí iniciou a sua actividade de docente. É
pós-graduado em Economia Histórica pela Universidade Nova de Lisboa e
doutorado em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
mesma Universidade. Naquela faculdade prosseguiu, em 1981, a actividade de
docente.
Entre 1994 e 2001, exerceu os cargos de vereador com os pelouros da
Cultura e da Habitação Social da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi
responsável pelo programa de realojamento e erradicação dos bairros
degradados. De 1996 a 1997 e de 1998 a 2002 foi porta-voz para os assuntos
da Educação do PSD. Em 1999 foi eleito deputado à Assembleia da República.
David Justino tomou posse como ministro da Educação do XV Governo
Constitucional a 6 de Abril de 2002.
Rogério Chambel |