Público - 28 Set 03

Regar a Areia
Por ANTÓNIO BARRETO

Do "Portugal 2010", relatório da McKinsey, sobre a produtividade, apenas é conhecida, por enquanto, a chamada versão para executivos, umas escassas 15 páginas de resumos. Ao que parece, o estudo integral será divulgado dentro de pouco tempo. Não se pode dizer que a obra traga muitas novidades. A maior parte das conclusões é conhecida. Encontro ali pontos de vista, quantificados ou não, defendidos por especialistas portugueses e estrangeiros há vários anos. Mas, para um povo tão duro a tomar conhecimento de factos desagradáveis e para umas classes dirigentes tão acanhadas a tomar decisões difíceis, é útil ver técnicos experientes confirmar diagnósticos antigos e mostrar, com dedo apontado, as deficiências da economia. Da economia e da política!

Confirma-se que a produtividade portuguesa é de cerca de metade da média dos países europeus mais produtivos. É interessante verificar, novamente, que o mais poderoso obstáculo ao crescimento da produtividade é, por atacado, a evasão e a fuga fiscal, a economia paralela, o mercado negro de trabalho e mercadorias, o não cumprimentos das regras reguladoras do mercado, o não pagamento das contribuições para a Segurança Social, o não acatamento das regras relativas ao salário mínimo e o desrespeito pelos padrões de qualidade ou pelas normas de segurança. A tudo isto os autores chamam "informalidade", responsável por mais de um quarto dos diferenciais de produtividade de Portugal relativamente aos parceiros europeus.

Segundo a importância relativa, os dois obstáculos seguintes põem em causa directamente a Administração Pública: deficiências no ordenamento do território, na burocracia e nos licenciamentos (24 por cento das responsabilidades) e as insuficiências na prestação de serviços públicos (22 por cento de responsabilidade). Apesar de ouvirmos todos os dias os governantes vituperar contra a legislação laboral, considerando-a como o
maior pecado da economia, é curioso ver esta empresa considerar essa barreira responsável por apenas 13 por cento das deficiências de produtividade.

O mais interessante de todo o relatório é a conclusão geral: a maior parte do diferencial de produtividade e os respectivos obstáculos não dependem de factores estruturais atávicos e de longa duração, antes podem ser eliminados por políticas económicas, a exemplo do que outros países têm vindo a fazer, como a Irlanda e a Espanha. Concluindo: os portugueses são, há anos, mal governados; a ilicitude nos comportamentos dos agentes económicos é frequente e tolerada pela Administração; e as classes empresariais comportam-se com elevados graus de irresponsabilidade.

Não tardou muito até que políticos do governo e da oposição, comentadores e analistas viessem a público comentar as conclusões. Curiosamente, quase todos referiram uma ideia comum: deste trabalho conclui-se que a prioridade é a educação! Não sei onde foram buscar tal raciocínio e tal evidência. Por coincidência, na mesma semana, fizeram-se ouvir inúmeras vozes de estudantes a negar o pagamento de propinas; de professores a protestar contra o seu elevado montante; e de reitores a condenar o facto, imposto pela lei, de terem de ser as universidades a fixar os respectivos valores. De comum aos vários protestos, a exigência de ver a educação ser considerada a prioridade do governo.

Esta ideia é consensual, indiscutível e sagrada. Com um povo, umas classes médias e umas classes dirigentes tão mal educados, é natural que assim se pense. Mas, olhando com cuidado, depressa nos damos conta de que há aqui embuste. Na verdade, a educação é, há décadas, o sector prioritário na acção dos governos. Qualquer que seja o critério utilizado (despesa pública por habitante, percentagem do PIB, parte na despesa pública total, percentagem da despesa com as funções sociais, etc.), a educação é sempre o sector mais favorecido. Para a educação foram canalizados recursos em mais elevados montantes e foram recrutados mais funcionários qualificados. Foi para a educação que se abriram mais vagas na Administração Pública. Foi na educação (a seguir à magistratura...) que se verificaram as mais fortes subidas excepcionais de vencimentos. É o ministério da educação o que alberga mais funcionários e maior número de técnicos qualificados.

Na comparação com os parceiros europeus, o sector da educação é, em Portugal, um dos que recebe a maior parte do produto, se calcularmos valores médios para os últimos vinte anos. Em toda a Europa, a mais elevada taxa de crescimento da despesa pública com a educação é a que se verifica em Portugal. É também entre nós que ocorreu o mais acelerado ritmo de recrutamento de pessoal qualificado para a educação. Portugal exibe ainda um
das mais favoráveis rácios de alunos por docente. Finalmente, os professores portugueses do ensino básico e secundário são, em paridades de poder de compra e em percentagem do produto, os mais bem pagos da União Europeia e da OCDE.

Em conclusão: a prioridade à educação está, em termos financeiros e de despesa pública, largamente garantida há muitos anos. O que liquida os argumentos da maior parte dos que a reclamam, dado que, na verdade, aquilo de que falam é, invariavelmente, dinheiro. Os problemas da educação portuguesa são outros. O enorme desperdício, por exemplo. O excesso de despesa com vencimentos e a insuficiência de investimentos. Os milhares de professores que não ensinam nem investigam. Os dispendiosos métodos de aquisição de equipamentos. A estrutura escolar dispersa e pulverizada. O esforço reduzido com a investigação e exagerado com ensinos inúteis. Os métodos pedagógicos consolidados por trinta anos de modas e que consagram o laxismo e a complacência. A falta de severidade, rigor e disciplina. A irresponsabilidade das escolas, das autarquias e de muitos professores, directores e reitores. A gestão centralizada do sistema educativo. E outros...

Se a prioridade à educação fosse entendida como um esforço colossal, de anos e anos, orientado para a resolução destes problemas, então sim, vale a pena afirmar essa política. Mas se se trata, como parece, de obter mais dinheiro, então é melhor sabermos que o que se faz é financiar a irresponsabilidade, a preguiça e a vigarice. Melhor seria deitar dinheiro para a rua, pois assim não se alimentariam vícios.

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