Para David Schnautz, Portugal é uma linha numa folha
de cálculo.
Ontem de manhã, emprestou-nos dinheiro, comprando
obrigações da República. Depois, foi surpreendido:
afinal não há Orçamento - os juros dispararam.
Schnautz sentiu-se enganado. E ironizou, ao
Negócios: "Da próxima vez que participar num leilão
de dívida de Portugal, é provável que queira cobrar
um prémio de juro 'contra todos os riscos'...".
Portugal está nas mãos dos David Schnautzes. Este
especialista em obrigações do Commerzbank, em
Londres, representa "os mercados": os nossos
credores. E nós, os aflitos, que imagem damos? A de
um País em derrapagem orçamental alarmante, incapaz
de se governar ou sequer de acordar mínimos
olímpicos para um Orçamento do Estado. Este
dia-sim-dia-não da aprovação do Orçamento é humor
negro. Os Schnautzes de Londres podem dizer-nos o
que Hamlet disse à mãe: "Inconstância, teu nome é
Portugal".
A mãe de Hamlet, Rainha da Dinamarca, casou com o
cunhado depois deste lhe matar o marido. O que se
segue ao fractidício-regicídio é uma história de
loucura e de alianças torpes. Também Portugal tarda
em vingar os seus fantasmas, enquanto serve de
entrada na Europa a ditadores. Recebemos ministros
do Irão, vendemos bancos ao poder de angolanos,
abrimos palácios a líbios, mendigamos dinheiro
chinês, encomendamos fanfarras a venezuelanos para
lhes vender pela segunda vez o que da primeira não
nos pagaram. Isto não é "real politik", é carência e
aflição. Tem de ser. O que custa é perceber como os
mesmos que são tão fáceis para negócios exteriores
se façam tão difíceis para acordos internos.
Os portugueses trabalham para pagar impostos e
Portugal vive para pagar dívidas. Não estamos aqui
para crescer, expandir, lucrar, investir; estamos a
contrair, cortar, pagar, desendividar - estamos a
destruir economia. Ou, nome técnico, estamos a
entrar em recessão.
Quando José Sócrates e Passos Coelho saem de
Portugal, como saíram ontem, ficam imediatamente
lúcidos. "Os mercados", Angela Merkel e Durão
Barroso não precisam de fazer mais do que levantar o
sobreolho para fazer corar de vergonha quem insiste
em ignorar os saltos do sismógrafo.
Chamar o FMI é uma rendição. Mas é, também,
perdição. Porque os credores nunca estão
interessados em salvar quem lhes deve dinheiro, mas
em recuperar a dívida. Podemos vociferar contra a
Alemanha e dizer que nos deram o euro para o
gastarmos a comprar-lhes produtos, mas isso não
serve de nada. Toda a política comercial externa da
União foi concebida a pensar na Alemanha, foi daí
que no passado surgiu a pressão da abertura à China,
como é daí que surge hoje a pressão para que a China
valorize a sua moeda e passe a comprar (e não apenas
vender) produtos à Europa. Foi a Alemanha que nos
vendeu os automóveis com que nos endividámos e os
submarinos com que submergimos. Mas a cabeça é
nossa. Para pensar ou para a perder. Que sirva de
lição: é cada um por si e nós por nós.
Se Portugal persistir nesta balbúrdia política,
teremos um FMI, não um MFA. E o FMI vem a pedido dos
devedores com mandato dos credores. A proposta alemã
de retirar o voto na União a países que peçam
auxílio financeiro não vai passar, é apenas a
debulhadora para abrir caminho à discussão. Mas
mesmo sem esse radicalismo, vamos perder autonomia.
Portugal não é uma empresa, é um País. Um país sem
Hamlet, sem rainha, sem rei nem roque. "Há algo de
podre no reino da Dinamarca."