A rasteira que estava escondida no Orçamento José Manuel Fernandes
O Governo tentou fazer aprovar, à boleia do OE, uma
"oportuna" alteração à lei de financiamento dos
partidos (2009 é ano de eleições) que fazia
regressar a opacidade onde, apesar de tudo, a lei em
vigor impunha alguma transparência
O Ministério das Finanças produziu ontem de manhã um
extraordinário comunicado. Apanhado "com a boca na
botija" pelo Diário Económico, que revelava o modo
como, sub-reptícia, traiçoeira e manhosamente, a Lei
do Orçamento do Estado para 2009 alterava a lei do
financiamento dos partidos (em ano eleitoral...), a
assessoria de imprensa, noutras ocasiões muda e
queda (como na véspera, em que não respondeu às
perguntas daquele jornal), precipitou-se. E
atirou-se a uma piscina sem água.
E que disse ela, em nome do ministro Teixeira dos
Santos?
Primeiro, que "o que se pretende alterar com o
artigo 133º da Proposta de Lei do OE/2009 é o
referencial de fixação dos montantes legalmente
previstos para o financiamento público ou privado
dos partidos políticos, que deixa de ser o salário
mínimo nacional e passará a ser o indexante de
apoios sociais (IAS)", ou seja, algo absolutamente
inócuo.
Depois, que "relativamente aos donativos de natureza
pecuniária feitos por pessoas singulares, estes
continuam a ser obrigatoriamente depositados em
contas bancárias, exclusivamente destinadas para
esse efeito, e nas quais só podem ser efectuados
depósitos que tenham esta origem".
Por outras palavras: o ministério começou por mentir
sobre o alcance da alteração legal e, depois,
eventualmente na esperança de que todos fôssemos
tolos, fingiu que tudo continuava na mesma, quando
tudo ficava diferente. Hoje, na página 4,
reproduzimos o texto da lei em vigor sobre
financiamento partidário e o que nela seria alterado
pela proposta de Orçamento. Não é preciso ser
jurista, basta saber ler português, para perceber
que desaparecia um dos elementos nucleares da lei de
2003 (a tal época negra que o Governo se esforça por
apagar e destruir): a proibição de os partidos
receberem donativos em dinheiro.
Este ponto é absolutamente central. De acordo com a
lei de 2003, e que entrou em vigor em 2005, todas as
contribuições para os partidos, para além de estarem
limitadas no seu montante máximo, têm de ser
realizadas por cheque ou por transferência bancária.
Porquê? Porque assim sabe-se quem doou e quem
recebeu. Tanto o cheque como a transferência
bancária deixam rasto - as doações em dinheiro vivo
não. O facto de serem depositadas numa conta
especial nada muda, pois é sabido que qualquer
pessoa pode depositar dinheiro de um terceiro na
conta que entender.
Com esta alteração legislativa, feita à socapa, sem
frontalidade e embrulhada nas mentiras do comunicado
matinal do Ministério das Finanças, deixava-se de
poder traçar o rasto do dinheiro, ou seja, de poder
um dia saber se um doador generoso teria ou não sido
beneficiado por uma decisão do partido que
financiara. Goste-se ou não, a verdade é que a
corrupção grassa onde há falta de transparência e
mirra onde esta existe. A corrupção vive da
opacidade, e era a opacidade que regressava de forma
ínvia com a proposta incluída no Orçamento do
Estado.
E, garante-vos, sei do que falo: como réu num
processo movido ao PÚBLICO por ter denunciado o que
se passava na Câmara de Felgueiras, acompanhei, no
tribunal local, o testemunho de alguns protagonistas
que, sem corarem ou darem sinais de arrependimento,
reconheceram ter sido naquela terra prática habitual
passar maços de notas embrulhadas em jornais no
átrio dos Paços do Concelho. Foi um dos dias mais
deprimentes mas também mais reveladores da minha
vida, pelo que não posso ter qualquer dúvida sobre o
significado de voltar a autorizar, mesmo que de
forma disfarçada, as doações em dinheiro vivo, o que
não tem cheiro nem deixa rasto.
Felizmente que, em Portugal, ainda há jornais e
jornalistas que não desistiram de ser vigilantes, e
a marosca veio a público. O que espanta é, depois
dos pareceres categóricos recolhidos pelo Diário
Económico junto de pessoas como o fiscalista
Saldanha Sanches ou Mouraz Lopes, do Grupo de
Estudos contra a Corrupção, o ministro e o
ministério tenham insistido no logro e tentado fazer
crer que era, apenas, uma questiúncula do PSD.
Infelizmente, para eles, o socialista João Cravinho
- o que se cansou de tentar fazer aprovar pelo seu
partido uma lei decente de prevenção e combate à
corrupção - também não teve dúvidas. Pelo que acabou
por surgir o inevitável recuo, que ainda estamos
para saber como se irá realmente processar.
P.S. Da mesma forma que o Diário Económico cumpriu o
seu papel, ou que António José Teixeira foi à SIC
explicar o que estava em causa, a RTP produziu,
sobre a matéria, uma peça que, sob o diáfano véu do
pluralismo e do princípio de dar voz às duas partes,
nada permitia perceber, pois em nenhum momento disse
o que estabelece a lei e o que se propunha no
Orçamento. Terá cumprido os critérios da ERC, mas
não fez mais do que contribuir para a mistificação
que, desde a manhã, o acossado Ministério das
Finanças tentava manter de pé.