Público  - 17 Out 08

 

Repensemos os grandes projectos de investimento público
Luís Campos e Cunha

 

Uma reavaliação pelo Governo dos projectos seria prova de boa gestão e de preocupação pelo nosso dinheiro

 

O futuro a Deus pertence, mas nós podemos dar uma ajuda. Esta é a minha contribuição: repensemos, por favor, os grandes projectos de investimento público.

 

1. O que interessa para a melhoria do nosso bem-estar não é o crescimento do PIB, mas do Rendimento Nacional Bruto (RNB) (1). Basicamente, a diferença entre o PIB e o RNB é a balança de rendimentos com o exterior. Esta tem sido negativa, o que leva a que o RNB, que nos interessa, esteja sempre abaixo do PIB. Mas, mais importante, a dita balança está cada vez mais negativa, o que quer dizer - mais grave ainda - que o crescimento do RNB é mais baixo do que o crescimento do PIB, que, por sua vez, já é muito anémico, diga-se.

 

De facto, os pagamentos ao exterior em juros têm aumentado muito, em consequência do elevado e crescente endividamento - público e privado - do país. Este endividamento tem aumentado uns 8% do PIB ao ano, o que leva a que os juros dessa dívida cresçam, também, todos os anos. E com eles o défice da Balança de Rendimentos, que fica cada vez mais negativa. Ou seja, o Rendimento Nacional Bruto estagna ou mesmo regride, uma vez que o PIB já pouco tem crescido. De facto, a percepção de que estamos basicamente na mesma, em termos de bem-estar, nos últimos oito anos é, grosso modo, verdade. Assim o mostra a evolução do RNB.

 

As razões desse endividamento crescente ao exterior em consequência do défice externo (2) tem, por sua vez, por detrás a queda na taxa interna de poupança.

 

2. Nestas circunstâncias, como o endividamento externo rondava em 2007 os 100% do PIB, se a taxa de juro média do financiamento da nossa economia rondar os 6%, temos o RNB abaixo do PIB em cerca de 6%. E se este ano (de 2008) o crescimento do PIB for de 0,6% e o endividamento externo aumentar para 110% do PIB (cenários muito razoáveis), mesmo mantendo a taxa de juro, o crescimento do RNB será nulo, devido ao aumento dos juros pagos ao exterior! Todo o crescimento do PIB serve apenas para as famílias, empresas e Estado pagarem os juros devidos ao exterior. Mas, como a taxa de juro aumentará, teremos o RNB a cair, mesmo que o PIB cresça os tais 0,6%. Isto é, o nosso bem-estar piora.

 

3. Com a taxa de poupança estagnada, mais mil euros de investimento significa que, directa ou indirectamente, serão mais mil euros de endividamento ao exterior, sobre os quais iremos pagar 6 a 8% (ou mais) de juros daqui para a frente, todos os anos.

 

Imagine agora um grande investimento público à moda antiga, ou seja, integralmente financiado pelo orçamento público. Imagine que o seu montante é de mil milhões e que o Estado é capaz de se financiar à taxa de 5% (directa ou indirectamente, é sempre ao exterior), o que implica pagar ao exterior, em juros, mais 50 milhões todos os anos. Se o investimento tiver uma rentabilidade (social) de 3%, significa que todos os anos o PIB será permanentemente mais 30 milhões do que seria sem o investimento (3). Mas o RNB, o relevante para o nosso bem-estar, com o investimento seria permanentemente mais baixo em 20 milhões do que se não o tivéssemos realizado o dito investimento. Basta ao aumento do PIB em 30 subtrair os 50 que teremos de pagar ao estrangeiro.

 

Este mesmo investimento, se não for financiado pelo Orçamento mas realizado por uma PPP, em que privados se endividariam, seria ainda pior. Os seus custos de financiamento - a taxa de juro - nunca seriam 5%, mas, por exemplo, 10% ao ano (4). O PIB aumentaria os mesmos 30 milhões, mas o RNB cairia, permanentemente, em 70 milhões (5).

 

4. Este exemplo chama a atenção para factos que deveriam ser claros para qualquer economista, mas certamente não o são para a maioria da população. Aliás, nem necessitaria de ter défice externo para o raciocínio exposto ser verdadeiro. Primeiro: o investimento é um custo, o custo de comprar a máquina. Segundo: este custo só fará aumentar o PIB na medida da sua rentabilidade. Terceiro: se esta for inferior ao custo do financiamento, ficamos mais pobres. Quarto: o investimento público, pequeno ou grande, e qualquer que seja a sua forma de financiamento, deve ser devidamente estudado numa análise (social) de custo-benefício. Mesmo assim, cometem-se erros, mas no caso contrário os erros são certos.

 

Nessa análise social aparecem não só os aspectos económicos do empreendimento mas outros efeitos externos. Estes podem ser positivos (melhor ambiente, efeitos noutros sectores, redução no desemprego...) e negativos (desordenamento, estragos na paisagem, poluição...). Cada projecto tem de ser avaliado nestes aspectos a somar aos estritamente económico-empresariais.

 

5. Na situação previsível para os próximos anos, os mercados estarão muito mais sensíveis a problemas de risco. O custo da dívida pública (e privada) subiu significativamente durante os últimos três anos e, mesmo numa situação de rápida normalização, não é expectável que, por muitos anos, venha a baixar para os níveis anteriores à crise. Assim, uma reavaliação pelo Governo dos projectos seria prova de boa gestão e de preocupação pelo nosso dinheiro. Um bom projecto avaliado nos cenários previsíveis de há três anos pode ser um mau projecto, depois do terramoto financeiro que estamos a sentir. Em muitos casos essa análise custo-benefício nem é para refazer mas para fazer pela primeira vez, porque nunca foi feita. Fizeram-se estudos vários e parcelares, mas não a análise social custo-benefício.

 

6. A finalizar há ainda três notas muito importantes. Primeira: o efeito keynesiano da despesa pública tem de ser considerado nessa avaliação, mas será sempre muito pequeno (provavelmente zero) porque já vivemos num excesso de procura (e não em excesso de oferta) como prova o elevado défice externo. Além disso, esse efeito seria sempre transitório e "abrir e tapar buracos" também teria efeitos keynesianos sem despesas futuras e criando muito mais emprego.

 

Segundo: os mercados de crédito funcionam com restrições quantitativas: nenhum banco empresta a um cidadão mediano, digamos, 5 milhões de euros, por muito alta que seja a taxa de juro que este esteja disposto a pagar. Mas não terá problemas em lhe emprestar 50 mil e a uma taxa aceitável. Estes grandes projectos, com retornos no futuro distante, mas com necessidades de grandes financiamentos imediatas (literalmente, neste momento) podem secar a capacidade de endividamento (limite quantitativo) das nossas empresas de construção e dos nossos bancos. Então, se tal acontecer, todas as outras empresas ficarão sem crédito, bem como as famílias. Possivelmente, o menor dos males, teríamos bancos estrangeiros a entrar no nosso mercado, bem como empresas de construção (nomeadamente espanholas). E, uma vez cá, as nossas empresas e bancos perderão o seu mercado natural e ficarão sem capacidade de competir, pois estariam no limite da sua capacidade de endividamento.

 

Terceiro: mesmo que tais restrições de quantidade não se fizessem sentir, é natural que os grandes investimentos públicos previstos de 20 mil milhões ou mais tenham um impacto no custo de financiamento da dívida já existente. Por exemplo, suponha que a taxa de juro da dívida nacional de 100% do PIB passa de 6% para 6,2% pelo aumento de risco de mais endividamento (directo ou indirecto) do Estado de 20 mil milhões. Então, por esse custo acrescido de 0,2 pontos percentuais, todos - famílias, empresas, Estado - pagaremos, todos os anos, mais 200 milhões de euros pela dívida já existente. A taxa de juro dos empréstimos à habitação já concedidos, neste exemplo, subiria 0,2 pontos por esse facto. Estes custos têm de entrar numa análise social de custo-benefício dos projectos, exigindo taxas de retorno ao investimento ainda mais elevadas para que o desastre não seja certo.

 

7. A concluir, embora ainda fique muito por dizer, o investimento faz crescer a economia se e só se for socialmente rentável. E o efeito no crescimento do PIB é incerto na maioria dos grandes projectos. O seu impacto no que interessa - o Rendimento Nacional - é quase certo ser negativo. O que significa que ficaremos todos a viver pior com este tipo de investimento. Seria bom que os meus receios fossem infundados, mas o ónus da prova é de quem quer gastar o nosso dinheiro. Não me vão calar por dizerem que pareço a Dra. Ferreira Leite nestes comentários. É que há uma diferença fundamental entre mim e Ferreira Leite: eu ando a dizer isto há muito tempo e Ferreira Leite, quando ministra das Finanças, ficou calada, exactamente quando podia ter feito a diferença. Fica dito e escrito, mais uma vez. Professor universitário

 

(1) Em rigor, seria o Rendimento Nacional Bruto avaliado a preços de mercado.
(2) Em rigor, é igual ao défice das balanças corrente e de capitais.
(3) Isto é, 3% vezes mil milhões de investimento.
(4) Seria, na verdade e no horizonte previsível, muito mais de 10%.
(5) Ou seja, 10% menos 3%, vezes os mil milhões do investimento dá 70 milhões, todos os anos. Se não gostar de 10%, tome qualquer outra taxa (claramente acima de 5%) e refaça as contas e obterá resultados semelhantes.