Repensemos os grandes projectos de investimento
público Luís Campos e Cunha
Uma reavaliação pelo Governo dos projectos seria
prova de boa gestão e de preocupação pelo nosso
dinheiro
O futuro a Deus pertence, mas nós podemos dar uma
ajuda. Esta é a minha contribuição: repensemos, por
favor, os grandes projectos de investimento público.
1. O que interessa para a melhoria do nosso
bem-estar não é o crescimento do PIB, mas do
Rendimento Nacional Bruto (RNB) (1). Basicamente, a
diferença entre o PIB e o RNB é a balança de
rendimentos com o exterior. Esta tem sido negativa,
o que leva a que o RNB, que nos interessa, esteja
sempre abaixo do PIB. Mas, mais importante, a dita
balança está cada vez mais negativa, o que quer
dizer - mais grave ainda - que o crescimento do RNB
é mais baixo do que o crescimento do PIB, que, por
sua vez, já é muito anémico, diga-se.
De facto, os pagamentos ao exterior em juros têm
aumentado muito, em consequência do elevado e
crescente endividamento - público e privado - do
país. Este endividamento tem aumentado uns 8% do PIB
ao ano, o que leva a que os juros dessa dívida
cresçam, também, todos os anos. E com eles o défice
da Balança de Rendimentos, que fica cada vez mais
negativa. Ou seja, o Rendimento Nacional Bruto
estagna ou mesmo regride, uma vez que o PIB já pouco
tem crescido. De facto, a percepção de que estamos
basicamente na mesma, em termos de bem-estar, nos
últimos oito anos é, grosso modo, verdade. Assim o
mostra a evolução do RNB.
As razões desse endividamento crescente ao exterior
em consequência do défice externo (2) tem, por sua
vez, por detrás a queda na taxa interna de poupança.
2. Nestas circunstâncias, como o endividamento
externo rondava em 2007 os 100% do PIB, se a taxa de
juro média do financiamento da nossa economia rondar
os 6%, temos o RNB abaixo do PIB em cerca de 6%. E
se este ano (de 2008) o crescimento do PIB for de
0,6% e o endividamento externo aumentar para 110% do
PIB (cenários muito razoáveis), mesmo mantendo a
taxa de juro, o crescimento do RNB será nulo, devido
ao aumento dos juros pagos ao exterior! Todo o
crescimento do PIB serve apenas para as famílias,
empresas e Estado pagarem os juros devidos ao
exterior. Mas, como a taxa de juro aumentará,
teremos o RNB a cair, mesmo que o PIB cresça os tais
0,6%. Isto é, o nosso bem-estar piora.
3. Com a taxa de poupança estagnada, mais mil euros
de investimento significa que, directa ou
indirectamente, serão mais mil euros de
endividamento ao exterior, sobre os quais iremos
pagar 6 a 8% (ou mais) de juros daqui para a frente,
todos os anos.
Imagine agora um grande investimento público à moda
antiga, ou seja, integralmente financiado pelo
orçamento público. Imagine que o seu montante é de
mil milhões e que o Estado é capaz de se financiar à
taxa de 5% (directa ou indirectamente, é sempre ao
exterior), o que implica pagar ao exterior, em
juros, mais 50 milhões todos os anos. Se o
investimento tiver uma rentabilidade (social) de 3%,
significa que todos os anos o PIB será
permanentemente mais 30 milhões do que seria sem o
investimento (3). Mas o RNB, o relevante para o
nosso bem-estar, com o investimento seria
permanentemente mais baixo em 20 milhões do que se
não o tivéssemos realizado o dito investimento.
Basta ao aumento do PIB em 30 subtrair os 50 que
teremos de pagar ao estrangeiro.
Este mesmo investimento, se não for financiado pelo
Orçamento mas realizado por uma PPP, em que privados
se endividariam, seria ainda pior. Os seus custos de
financiamento - a taxa de juro - nunca seriam 5%,
mas, por exemplo, 10% ao ano (4). O PIB aumentaria
os mesmos 30 milhões, mas o RNB cairia,
permanentemente, em 70 milhões (5).
4. Este exemplo chama a atenção para factos que
deveriam ser claros para qualquer economista, mas
certamente não o são para a maioria da população.
Aliás, nem necessitaria de ter défice externo para o
raciocínio exposto ser verdadeiro. Primeiro: o
investimento é um custo, o custo de comprar a
máquina. Segundo: este custo só fará aumentar o PIB
na medida da sua rentabilidade. Terceiro: se esta
for inferior ao custo do financiamento, ficamos mais
pobres. Quarto: o investimento público, pequeno ou
grande, e qualquer que seja a sua forma de
financiamento, deve ser devidamente estudado numa
análise (social) de custo-benefício. Mesmo assim,
cometem-se erros, mas no caso contrário os erros são
certos.
Nessa análise social aparecem não só os aspectos
económicos do empreendimento mas outros efeitos
externos. Estes podem ser positivos (melhor
ambiente, efeitos noutros sectores, redução no
desemprego...) e negativos (desordenamento, estragos
na paisagem, poluição...). Cada projecto tem de ser
avaliado nestes aspectos a somar aos estritamente
económico-empresariais.
5. Na situação previsível para os próximos anos, os
mercados estarão muito mais sensíveis a problemas de
risco. O custo da dívida pública (e privada) subiu
significativamente durante os últimos três anos e,
mesmo numa situação de rápida normalização, não é
expectável que, por muitos anos, venha a baixar para
os níveis anteriores à crise. Assim, uma reavaliação
pelo Governo dos projectos seria prova de boa gestão
e de preocupação pelo nosso dinheiro. Um bom
projecto avaliado nos cenários previsíveis de há
três anos pode ser um mau projecto, depois do
terramoto financeiro que estamos a sentir. Em muitos
casos essa análise custo-benefício nem é para
refazer mas para fazer pela primeira vez, porque
nunca foi feita. Fizeram-se estudos vários e
parcelares, mas não a análise social custo-benefício.
6. A finalizar há ainda três notas muito
importantes. Primeira: o efeito keynesiano da
despesa pública tem de ser considerado nessa
avaliação, mas será sempre muito pequeno
(provavelmente zero) porque já vivemos num excesso
de procura (e não em excesso de oferta) como prova o
elevado défice externo. Além disso, esse efeito
seria sempre transitório e "abrir e tapar buracos"
também teria efeitos keynesianos sem despesas
futuras e criando muito mais emprego.
Segundo: os mercados de crédito funcionam com
restrições quantitativas: nenhum banco empresta a um
cidadão mediano, digamos, 5 milhões de euros, por
muito alta que seja a taxa de juro que este esteja
disposto a pagar. Mas não terá problemas em lhe
emprestar 50 mil e a uma taxa aceitável. Estes
grandes projectos, com retornos no futuro distante,
mas com necessidades de grandes financiamentos
imediatas (literalmente, neste momento) podem secar
a capacidade de endividamento (limite quantitativo)
das nossas empresas de construção e dos nossos
bancos. Então, se tal acontecer, todas as outras
empresas ficarão sem crédito, bem como as famílias.
Possivelmente, o menor dos males, teríamos bancos
estrangeiros a entrar no nosso mercado, bem como
empresas de construção (nomeadamente espanholas). E,
uma vez cá, as nossas empresas e bancos perderão o
seu mercado natural e ficarão sem capacidade de
competir, pois estariam no limite da sua capacidade
de endividamento.
Terceiro: mesmo que tais restrições de quantidade
não se fizessem sentir, é natural que os grandes
investimentos públicos previstos de 20 mil milhões
ou mais tenham um impacto no custo de financiamento
da dívida já existente. Por exemplo, suponha que a
taxa de juro da dívida nacional de 100% do PIB passa
de 6% para 6,2% pelo aumento de risco de mais
endividamento (directo ou indirecto) do Estado de 20
mil milhões. Então, por esse custo acrescido de 0,2
pontos percentuais, todos - famílias, empresas,
Estado - pagaremos, todos os anos, mais 200 milhões
de euros pela dívida já existente. A taxa de juro
dos empréstimos à habitação já concedidos, neste
exemplo, subiria 0,2 pontos por esse facto. Estes
custos têm de entrar numa análise social de
custo-benefício dos projectos, exigindo taxas de
retorno ao investimento ainda mais elevadas para que
o desastre não seja certo.
7. A concluir, embora ainda fique muito por dizer, o
investimento faz crescer a economia se e só se for
socialmente rentável. E o efeito no crescimento do
PIB é incerto na maioria dos grandes projectos. O
seu impacto no que interessa - o Rendimento Nacional
- é quase certo ser negativo. O que significa que
ficaremos todos a viver pior com este tipo de
investimento. Seria bom que os meus receios fossem
infundados, mas o ónus da prova é de quem quer
gastar o nosso dinheiro. Não me vão calar por
dizerem que pareço a Dra. Ferreira Leite nestes
comentários. É que há uma diferença fundamental
entre mim e Ferreira Leite: eu ando a dizer isto há
muito tempo e Ferreira Leite, quando ministra das
Finanças, ficou calada, exactamente quando podia ter
feito a diferença. Fica dito e escrito, mais uma
vez. Professor universitário
(1) Em rigor, seria o Rendimento Nacional Bruto
avaliado a preços de mercado.
(2) Em rigor, é igual ao défice das balanças
corrente e de capitais.
(3) Isto é, 3% vezes mil milhões de investimento.
(4) Seria, na verdade e no horizonte previsível,
muito mais de 10%.
(5) Ou seja, 10% menos 3%, vezes os mil milhões do
investimento dá 70 milhões, todos os anos. Se não
gostar de 10%, tome qualquer outra taxa (claramente
acima de 5%) e refaça as contas e obterá resultados
semelhantes.