Casamento 'Gay' e império galáctico João César das Neves
Hoje a política segue as regras dramáticas dos
filmes de aventuras. Como o nosso tempo cresceu à
sombra de 007, Indiana Jones, Star Wars e outras
ficções, elas modelaram a nossa sensibilidade. Os
exemplos poderiam multiplicar-se, mas a tragicomédia
que agora se encena em Portugal à volta da "magna"
questão do casamento dos homossexuais parece um caso
de antologia.
A história começa com um pequeno punhado de jovens e
intrépidos heróis que desafia a instituição vetusta
e paralisante, atrevidamente lançando uma
provocação. Os espectadores sustêm a respiração
perante a audácia, intimamente aplaudindo a bravura.
Entretanto, naturalmente, a sociedade gorda,
preconceituosa e estúpida, guincha de horror face à
justa proposta. A decisão, porém, será tomada nos
cumes irrespiráveis do poder, onde os heróis não
podem entrar, apesar de aí possuírem simpatias. O
supremo líder, que no fundo é boa pessoa, até
concorda com a causa nobre. Ele sabe que o futuro
pertence aos revolucionários e que a sociedade
apodrecida vai morrer. Mas para já tem de ceder aos
intrincados equilíbrios e acaba por adiar o
confronto para a próxima legislatura. Desta vez a
justiça foi sufocada mas não percam o segundo
episódio.
Nos dias que correm a política tem cada vez menos a
ver com os reais problemas, sendo crescentemente um
espectáculo de entretenimento. Não admira que adopte
as regras do género. Portugal tem gravíssimas
dificuldades de vária ordem. Exactamente quais são e
como se resolvem é assunto menor da actualidade,
entretanto obcecada com temas laterais, fictícios ou
simplesmente tontos, mas muito dramáticos: lutas
internas do PSD, eleições americanas, um empolado
surto criminal e, claro, o casamento dos
homossexuais.
Este último é o mais curioso porque, falho de
conteúdo, tem os contornos largamente determinados
pelas formas cinematográficas. A questão é
introduzida como um decisivo combate de civilização
a favor da justiça e dos direitos fundamentais. Mas
a pose é oca e infundada, pois as mesmas forças
políticas têm feito tudo o que podem para
desqualificar o casamento como força válida na
sociedade. Além disso, se é indispensável
regularizar a situação doméstica desses casais,
porque não da miríade de outras circunstâncias
familiares e relacionais que não possuem cobertura
jurídica? Apesar de tudo o número de coabitações de
irmãos, tios, sobrinhos ou amigos é maior que a dos
gays, para não falar dos casos de poligamia, incesto
e pedofilia, que a mesma sociedade (ainda) insiste
em repudiar. Porquê esta obsessão com uma situação
particular?
O Estado não regula o amor entre pessoas. Se o
fizesse teria de criar muitos contratos além do
casamento. A lógica da instituição matrimonial vem
das implicações estruturais na sociedade da união
fecunda entre mulher e homem, incomparáveis com as
de qualquer outra. Escamotear isto e tratar o
contrato como um direito do amor mútuo é uma tolice.
O enredo baseia-se num silêncio ensurdecedor. Todos
os participantes no debate fingem ignorar um facto
central, que traz o picante ao drama. A grande
maioria da população considera a homossexualidade
uma depravação, um acto intrinsecamente desordenado
e contrário à natureza. Não se trata de um
preconceito, mas de uma opinião válida e legítima a
ponderar. E não deve ser confundida com homofobia,
que é agressão ou discriminação de pessoas. É
possível discordar fortemente da orientação de
alguém, tratando-o com respeito e consideração. É
isso a democracia e é assim que somos chamados a
lidar com fumadores, racistas, poluidores.
Infelizmente não são tratados assim os que se opõem
à reforma. No caso dos homossexuais a única atitude
admissível parece ser a aceitação do dogma intocável
da sua perfeita equivalência com sexualidade normal.
Assim, o combate pelo casamento gay representa um
teste a esse sacrossanto mandamento da equivalência.
Deixa de ser um debate político, para se transformar
em cruzada quasi-religiosa. O assunto toma a emoção
de Luke Skywalker enfrentando o Império Galáctico.