Um golpe de mágica: faltar à escola e continuar
na escola
José Manuel Fernandes
Ao permitir que os alunos que excedam o máximo de
faltas injustificadas não percam o ano, o ministério
é capaz de resolver o problema do abandono escolar.
É que passa a contar como estando presente quem, de
facto, está ausente
Por vezes pergunta-se há quanto tempo - meses? Anos?
- os responsáveis pelo Ministério da Educação não
têm real contacto com uma escola do ensino básico ou
do ensino secundário. Isto é: há quanto tempo não
andam por lá a não ser em comitivas oficiais.
Uma pequena amostra da distância que existe entre os
burocratas do ministérios (e, provavelmente, o
grosso dos responsáveis políticos, sobretudo dos que
já não têm filhos a frequentar esses graus de
ensino) e a realidade das escolas foi-nos dada pela
surpresa vivida por Fernando Charrua quando
regressou à escola onde não dava aulas há duas
décadas após o polémico caso da DREN. Ao PÚBLICO,
que passou um dia de aulas com ele, confessou que o
que mais o surpreendera havia sido a indisciplina
dos alunos.
Ora, se antes trabalhava num organismo da
administração desconcentrada do Estado, teoricamente
mais próximo da realidade das escolas, e mesmo assim
se deparou com uma realidade para além do que
imaginava, não custa a crer que os professores
"destacados" que há muito enchem os serviços do
ministério ainda tenham uma noção mais longínqua do
que é gerir escolas onde há problemas de disciplina.
Já Marçal Grilo, que tinha no seu gabinete um mapa
com marcadores em todas as escolas que visitara
enquanto foi ministro, escreveria depois, com Dulce
Neto, um livro que significativamente se chamava
Difícil É Sentá-los. Ele terá percebido, ao escolher
para título, o desabafo que captara ao falar com um
professor do ensino básico, onde começam os
problemas de muitas escolas.
A leitura desse livro talvez tivesse evitado o
disparate que a maioria socialista impôs esta
semana, ao aprovar alterações a um já de si muito
disparatado Estatuto do Aluno. Supostamente o
objectivo desse documento é dar mais instrumentos
aos professores para estes imporem alguma disciplina
na escola e dentro da sala de aula, mas lendo o
documento fica-se aterrado. E não apenas por causa
da polémica em torno das faltas injustificadas.
Oque incomoda naquele
Estatuto do Aluno? A ideia de que é necessário
regulamentar até ao mínimo detalhe as condições em
que um aluno tem uma penalização por mau
comportamento - é posto fora da aula, o evento é
comunicado ao seu encarregado de educação e por aí
adiante.
Incomoda pelo irrealismo: a situação varia tanto de
escola para escola que estabelecer regras daquele
tipo pode ser absurdo e excessivo em muitos
estabelecimentos de ensino e totalmente insuficiente
noutros. Isso quer dizer que pode complicar a vida
nas escolas onde há poucos problemas de disciplina e
manietar uma acção mais enérgica do corpo docente em
estabelecimentos mais complicados. Quando as
condições em que se envia um aluno para a rua
durante uma aula passam a ser estabelecidas por lei,
ninguém deverá surpreender-se que um dia destes
actos tão banais como esse acabem nalgum tribunal, e
com o professor no banco dos réus.
E incomoda pela insensatez: se há domínio em que
valem muito mais as regras não escritas, a cultura
de disciplina e exigência, o bom senso e a
capacidade de liderança, esse domínio é o da
disciplina nas escolas. Dar ao que devia decorrer do
bom senso ou da autoridade natural a forma de uma
lei geral para todas as escolas e todos os
professores é do domínio do surrealismo.
Como se isto não bastasse, a cereja em cima do bolo
foi a introdução de uma norma que acaba com a perda
automática do aproveitamento nesse ano aos alunos
que excederem o número máximo autorizado de faltas
injustificadas. Diz o ministério que se quer, dessa
forma, impedir que saiam muitos alunos do sistema,
que as escolas percam estudantes, o que é sempre
negativo. E de facto é. Mas não é menos negativo dar
àqueles que faltam por sistema, que ficam a jogar à
bola ou a fazer patifarias quando os colegas estão
nas aulas o prémio de poderem "recuperar" através de
uma prova cujos termos são muito nebulosos.
Quem está no terreno e já teve oportunidade de
comentar a ideia converge, por regra, na condenação
do princípio. Porque suspeitam que isso acabe por
resultar num facilitismo que baixe ainda mais os
critérios de exigência de muitas escolas. Ou porque
temem que, sem penalização e sem poderem sair do
recinto escolar, os alunos que não estão para
"aturar" os professores acrescentem problemas aos
problemas que já existem.
Daí que, por mais voltas que se dê à cabeça, só se
encontra uma justificação plausível para esta
medida: o Governo comprometeu-se com um determinado
objectivo no que respeita ao abandono escolar e,
estando-se muito longe da meta, o "atalho" de
permitir a passagem de alunos que, mesmo não indo às
aulas, "continuam" na escola pode resultar numa
excelente estatística. Se não é essa a ideia, então
cabe à equipa ministerial explicar muito melhor qual
o objectivo da medida.