Público  - 28 Out 07

Um golpe de mágica: faltar à escola e continuar na escola
José Manuel Fernandes


Ao permitir que os alunos que excedam o máximo de faltas injustificadas não percam o ano, o ministério é capaz de resolver o problema do abandono escolar. É que passa a contar como estando presente quem, de facto, está ausente

Por vezes pergunta-se há quanto tempo - meses? Anos? - os responsáveis pelo Ministério da Educação não têm real contacto com uma escola do ensino básico ou do ensino secundário. Isto é: há quanto tempo não andam por lá a não ser em comitivas oficiais.

Uma pequena amostra da distância que existe entre os burocratas do ministérios (e, provavelmente, o grosso dos responsáveis políticos, sobretudo dos que já não têm filhos a frequentar esses graus de ensino) e a realidade das escolas foi-nos dada pela surpresa vivida por Fernando Charrua quando regressou à escola onde não dava aulas há duas décadas após o polémico caso da DREN. Ao PÚBLICO, que passou um dia de aulas com ele, confessou que o que mais o surpreendera havia sido a indisciplina dos alunos.

Ora, se antes trabalhava num organismo da administração desconcentrada do Estado, teoricamente mais próximo da realidade das escolas, e mesmo assim se deparou com uma realidade para além do que imaginava, não custa a crer que os professores "destacados" que há muito enchem os serviços do ministério ainda tenham uma noção mais longínqua do que é gerir escolas onde há problemas de disciplina. Já Marçal Grilo, que tinha no seu gabinete um mapa com marcadores em todas as escolas que visitara enquanto foi ministro, escreveria depois, com Dulce Neto, um livro que significativamente se chamava Difícil É Sentá-los. Ele terá percebido, ao escolher para título, o desabafo que captara ao falar com um professor do ensino básico, onde começam os problemas de muitas escolas.

A leitura desse livro talvez tivesse evitado o disparate que a maioria socialista impôs esta semana, ao aprovar alterações a um já de si muito disparatado Estatuto do Aluno. Supostamente o objectivo desse documento é dar mais instrumentos aos professores para estes imporem alguma disciplina na escola e dentro da sala de aula, mas lendo o documento fica-se aterrado. E não apenas por causa da polémica em torno das faltas injustificadas.

O que incomoda naquele Estatuto do Aluno? A ideia de que é necessário regulamentar até ao mínimo detalhe as condições em que um aluno tem uma penalização por mau comportamento - é posto fora da aula, o evento é comunicado ao seu encarregado de educação e por aí adiante.

Incomoda pelo irrealismo: a situação varia tanto de escola para escola que estabelecer regras daquele tipo pode ser absurdo e excessivo em muitos estabelecimentos de ensino e totalmente insuficiente noutros. Isso quer dizer que pode complicar a vida nas escolas onde há poucos problemas de disciplina e manietar uma acção mais enérgica do corpo docente em estabelecimentos mais complicados. Quando as condições em que se envia um aluno para a rua durante uma aula passam a ser estabelecidas por lei, ninguém deverá surpreender-se que um dia destes actos tão banais como esse acabem nalgum tribunal, e com o professor no banco dos réus.

E incomoda pela insensatez: se há domínio em que valem muito mais as regras não escritas, a cultura de disciplina e exigência, o bom senso e a capacidade de liderança, esse domínio é o da disciplina nas escolas. Dar ao que devia decorrer do bom senso ou da autoridade natural a forma de uma lei geral para todas as escolas e todos os professores é do domínio do surrealismo.

Como se isto não bastasse, a cereja em cima do bolo foi a introdução de uma norma que acaba com a perda automática do aproveitamento nesse ano aos alunos que excederem o número máximo autorizado de faltas injustificadas. Diz o ministério que se quer, dessa forma, impedir que saiam muitos alunos do sistema, que as escolas percam estudantes, o que é sempre negativo. E de facto é. Mas não é menos negativo dar àqueles que faltam por sistema, que ficam a jogar à bola ou a fazer patifarias quando os colegas estão nas aulas o prémio de poderem "recuperar" através de uma prova cujos termos são muito nebulosos.

Quem está no terreno e já teve oportunidade de comentar a ideia converge, por regra, na condenação do princípio. Porque suspeitam que isso acabe por resultar num facilitismo que baixe ainda mais os critérios de exigência de muitas escolas. Ou porque temem que, sem penalização e sem poderem sair do recinto escolar, os alunos que não estão para "aturar" os professores acrescentem problemas aos problemas que já existem.

Daí que, por mais voltas que se dê à cabeça, só se encontra uma justificação plausível para esta medida: o Governo comprometeu-se com um determinado objectivo no que respeita ao abandono escolar e, estando-se muito longe da meta, o "atalho" de permitir a passagem de alunos que, mesmo não indo às aulas, "continuam" na escola pode resultar numa excelente estatística. Se não é essa a ideia, então cabe à equipa ministerial explicar muito melhor qual o objectivo da medida.