Confusão surpreendente e homologação inaceitável
António Gentil Martins
O Código Deontológico da Ordem dos Médicos não deve
ser alterado nos seus artigos respeitantes ao aborto
e à eutanásia
A homologação do surpreendente Parecer da
Procuradoria-Geral da República em relação ao Código
Deontológico da Ordem dos Médicos, emitido após
solicitação expressa do senhor ministro da Saúde, é
um acto tão reprovável como inaceitável. Só numa
feroz ditadura se poderia perceber a imposição da
ética do Estado a uma classe profissional:
lembremo-nos do uso da psiquiatria para o controlo
dos dissidentes, utilizada na antiga União
Soviética.
Mas o mais grave é confundir ética, a primeira
universal e perene nos seus princípios fundamentais
e na defesa da dignidade humana, e a segunda,
conjuntural, e dependente de políticas habitualmente
transitórias. Porque terá sido elaborada a
Declaração Universal dos Direitos do Homem?
Antes da revolução de Abril de 1974, tanto o Código
Disciplinar como o Código Deontológico eram diplomas
legais. Contudo isso só é verdade, neste momento,
apenas em relação ao Código Disciplinar.
Foi na ocasião em que presidíamos à Ordem dos
Médicos que foram aprovados pela classe os Códigos
Deontológicos de 1981 e 1984, que agora o senhor
ministro da Saúde tenta, errada e abusivamente, pôr
em causa. Isto, sobretudo, em relação a alguns dos
seus princípios básicos, já claramente consagrados
no Juramento de Hipócrates, há mais de 2500 anos!...
Foi justamente por pensarmos que um Código Ético não
devia estar condicionado às conjunturas políticas
que ele se manteve, não como Lei, mas como
"Orientação Ética" para os médicos. É óbvio que se,
cumprindo a lei em vigor, houver médicos que o não
respeitem, nunca poderão ser punidos legalmente.
Ficarão, então, apenas, sujeitos à sanção moral que
a sua consciência lhes ditar. Mas a Ética não mudou!
Será que a escravatura, legal em séculos passados,
primeiro na Europa e depois nos Estados Unidos, foi,
alguma vez, eticamente correcta? Será que matar o é?
E os prisioneiros serem exsanguinados, na guerra
Irão-Iraque, quando era necessário dar sangue aos
soldados feridos, terá sido lícito? E o que pensar
da pena de morte, que Portugal foi o primeiro país a
abolir e cuja abolição agora, correctamente, se
pretende estender às leis do resto do mundo? Será
que alguém pode entender que a vida, no seu início,
no seu meio ou no seu fim, não tem valor e dela se
poderá dispor? E que dizer da interpretação que
pretende transformar a Objecção de Consciência dos
Médicos em relação ao aborto numa violação da
liberdade individual? Qual é o conceito de
"liberdade de consciência"? Deverá o Estado, ou
mesmo apenas uma classe profissional, abdicar da
defesa dos Valores Universais e tudo deixar ao
livre-arbítrio de cada um? Nenhuma sociedade
organizada o tem feito, ou poderá fazer.
Esperamos que o Governo não subscreva a posição do
seu ministro da Saúde, pois poderá, desde já, contar
com a frontal oposição da esmagadora maioria da
classe médica, o que ninguém, de bom senso,
certamente deseja.
Lutaremos sempre ao lado daqueles para quem o Código
Deontológico da Ordem dos Médicos não deve ser
alterado nos seus artigos respeitantes ao aborto e à
eutanásia e repudiamos frontalmente as ameaças de
sanções à Ordem dos Médicos feitas pelo senhor
ministro, com base no parecer da PGR, caso o Código
Deontológico não seja alterado. Será este um novo
conceito, mais progressista e "verdadeiro" (?) de
Estado democrático?
Ex-presidente da Ordem dos Médicos e da Associação
Médica Mundial e do seu Conselho de Ética