Público - 19 Out 07

Pobres teremos sempre connosco
José Miguel Júdice


Não é possível erradicar a pobreza como se de uma doença contagiosa se tratasse


Nos primeiros tempos do consulado cavaquista campeava pela Pátria um novo-riquismo a que, deve reconhecer-se, ninguém era mais estranho do que o então primeiro-ministro. O enrichissez-vous oitocentista parecia estar a ser copiado por estas paragens. Lembro-me de ter escrito várias vezes sobre este fenómeno e o seu contraponto sociológico que era o aumento dos pobres e da dureza que os novos tempos estavam a demonstrar. E recordo-me de ter dito que Portugal nessa época tinha, ao mesmo tempo, os pobres típicos das sociedades pré-industriais (sobretudo idosos, iletrados e doentes), os das sociedades de transição (pessoas de meia-idade trucidadas pela dinâmica capitalista em que muitos perdem emprego em momento das suas vidas e com qualificações desadequadas para a evolução entretanto ocorrida na sociedade) e os pobres das sociedades pós-industriais (jovens com problemas causados por comportamentos desviantes e desagregação dos tecidos familiares). Nada disso mudou para melhor.
Na altura ninguém me ligou nada. Reinava a ilusão de que o desenvolvimento económico se encarregaria de acabar com os pobres e a boa consciência construía-se na tese de que os pobres só de si próprios se podiam queixar, visto que as taxas de desemprego eram na altura muito baixas.
O tema voltou à ribalta, desta vez com a boa consciência a construir-se agora na tese do assistencialismo estatal e no ataque à eficiência empresarial, como se as empresas devessem ser - e assim se pensasse que poderiam sobreviver - fornecedores de locais para instalação de subemprego não produtivo.
Talvez por isso se justifique alinhar algumas ideias, que como é habitual serão um pouco heterodoxas, iconoclastas e até provocatórias.
Em primeiro lugar, não é possível erradicar a pobreza como se de uma doença contagiosa se tratasse. Assumindo-se a dignidade da pessoa humana, será sempre necessário uma componente assistencialista, a que se chamava antigamente caridade. Deve ser feita por privados (se existissem mais algumas Isabel Jonet em Portugal estaríamos muito melhor), mas tem também de ser paga pelo Estado. O Orçamento do Estado deve, por isso, ter uma relevante fatia para este efeito, devendo ser concessionada a gestão de tais recursos: se os privados gerem melhor do que o Estado as auto-estradas, porque carga de água não serão capazes de gerir melhor a luta contra a pobreza?
Em segundo lugar, é necessário alterar profundamente a legislação laboral. A luta contra o desemprego (que está no processo genético da pobreza actual) não se faz evitando artificialmente despedimentos, mas facilitando contratações. A propensão ao consumo de desempregados pelas empresas varia na proporção directa da certeza que tenham os empregadores de que, se os empregados não revelarem qualidades e esforço ou se a conjuntura económica mudar, poderão pôr termo aos contratos. Goste-se ou não, é assim.
Em terceiro lugar, são precisas políticas activas de promoção de emprego privado e produtivo. A estrutura da fiscalidade e da parafiscalidade em Portugal é inimiga do emprego (como o é da solidez dos capitais próprios) e deve ser alterada. A criação de emprego deveria ser subsidiada automaticamente com valores idênticos aos que o Estado gasta com subsídio de desemprego. Em termos macroeconómicos, o custo para o Estado é idêntico e, se esta ideia fosse associada à liberalização do mercado de trabalho, poderia ter resultados explosivos. Além disso, os descontos para a segurança social deveriam ser regressivos em função da quantidade de emprego, fazendo-se ao mesmo tempo a criação de uma IRC Social (uma taxa sobre os lucros) para manter o equilíbrio das contas públicas.
Em quarto lugar, tem de se reduzir o peso dos salários na função pública. Dizia-me há dias alguém, que não é ultraliberal e domina bem o tema, que há cerca de 150.000 funcionários públicos a mais. Este excesso drena recursos escassos que podiam ser em parte usados para a função assistencial do Estado. O modelo básico do Estado Social deve manter-se, mas para isso tem de evoluir: o conceito de emprego garantido e para a vida, mesmo que improdutivo (parece que no quadro do Ministério da Agricultura ainda há hoje 15 desmontadores de porcos!). Morreu de vez a falácia de que é possível na Europa competir globalmente pagando o preço de subemprego endémico. E com ela foi-se também a falácia de que o défice público é irrelevante.
Em quinto lugar, é essencial uma acção determinada da parte dos poderes públicos e dos opinion makers tendente a motivar os mais ricos e mais beneficiados pela fortuna para que atribuam à luta contra a pobreza a mesma prioridade que atribuem às casas e quintas de lazer, aos barcos e aos aviões, ao mecenato cultural e às legítimas vaidades deste mundo. Há mais de um ano louvei aqui João Rendeiro pela criação da EIS (Empresários pela Inclusão Social).
Infelizmente, que eu saiba, a sua atitude não foi seguida. E, só para dar dois exemplos, se Joe Berardo fizesse um leilão de parte da sua colecção para criar um fundo de luta contra a pobreza ou se Jardim Gonçalves abdicasse a favor dos pobres de uma parte substancial dos seus (legítimos) recursos financeiros (apesar de não os ter usado, segundo parece, para ajudar um filho em dificuldades) talvez outros se sentissem envergonhados por nada fazerem e as coisas começassem a mudar. Advogado