Não é possível erradicar a pobreza como se de uma
doença contagiosa se tratasse
Nos primeiros tempos do consulado cavaquista
campeava pela Pátria um novo-riquismo a que, deve
reconhecer-se, ninguém era mais estranho do que o
então primeiro-ministro. O enrichissez-vous
oitocentista parecia estar a ser copiado por estas
paragens. Lembro-me de ter escrito várias vezes
sobre este fenómeno e o seu contraponto sociológico
que era o aumento dos pobres e da dureza que os
novos tempos estavam a demonstrar. E recordo-me de
ter dito que Portugal nessa época tinha, ao mesmo
tempo, os pobres típicos das sociedades
pré-industriais (sobretudo idosos, iletrados e
doentes), os das sociedades de transição (pessoas de
meia-idade trucidadas pela dinâmica capitalista em
que muitos perdem emprego em momento das suas vidas
e com qualificações desadequadas para a evolução
entretanto ocorrida na sociedade) e os pobres das
sociedades pós-industriais (jovens com problemas
causados por comportamentos desviantes e
desagregação dos tecidos familiares). Nada disso
mudou para melhor.
Na altura ninguém me ligou nada. Reinava a ilusão de
que o desenvolvimento económico se encarregaria de
acabar com os pobres e a boa consciência
construía-se na tese de que os pobres só de si
próprios se podiam queixar, visto que as taxas de
desemprego eram na altura muito baixas.
O tema voltou à ribalta, desta vez com a boa
consciência a construir-se agora na tese do
assistencialismo estatal e no ataque à eficiência
empresarial, como se as empresas devessem ser - e
assim se pensasse que poderiam sobreviver -
fornecedores de locais para instalação de subemprego
não produtivo.
Talvez por isso se justifique alinhar algumas
ideias, que como é habitual serão um pouco
heterodoxas, iconoclastas e até provocatórias.
Em primeiro lugar, não é possível erradicar a
pobreza como se de uma doença contagiosa se
tratasse. Assumindo-se a dignidade da pessoa humana,
será sempre necessário uma componente
assistencialista, a que se chamava antigamente
caridade. Deve ser feita por privados (se existissem
mais algumas Isabel Jonet em Portugal estaríamos
muito melhor), mas tem também de ser paga pelo
Estado. O Orçamento do Estado deve, por isso, ter
uma relevante fatia para este efeito, devendo ser
concessionada a gestão de tais recursos: se os
privados gerem melhor do que o Estado as
auto-estradas, porque carga de água não serão
capazes de gerir melhor a luta contra a pobreza?
Em segundo lugar, é necessário alterar profundamente
a legislação laboral. A luta contra o desemprego
(que está no processo genético da pobreza actual)
não se faz evitando artificialmente despedimentos,
mas facilitando contratações. A propensão ao consumo
de desempregados pelas empresas varia na proporção
directa da certeza que tenham os empregadores de
que, se os empregados não revelarem qualidades e
esforço ou se a conjuntura económica mudar, poderão
pôr termo aos contratos. Goste-se ou não, é assim.
Em terceiro lugar, são precisas políticas activas de
promoção de emprego privado e produtivo. A estrutura
da fiscalidade e da parafiscalidade em Portugal é
inimiga do emprego (como o é da solidez dos capitais
próprios) e deve ser alterada. A criação de emprego
deveria ser subsidiada automaticamente com valores
idênticos aos que o Estado gasta com subsídio de
desemprego. Em termos macroeconómicos, o custo para
o Estado é idêntico e, se esta ideia fosse associada
à liberalização do mercado de trabalho, poderia ter
resultados explosivos. Além disso, os descontos para
a segurança social deveriam ser regressivos em
função da quantidade de emprego, fazendo-se ao mesmo
tempo a criação de uma IRC Social (uma taxa sobre os
lucros) para manter o equilíbrio das contas
públicas.
Em quarto lugar, tem de se reduzir o peso dos
salários na função pública. Dizia-me há dias alguém,
que não é ultraliberal e domina bem o tema, que há
cerca de 150.000 funcionários públicos a mais. Este
excesso drena recursos escassos que podiam ser em
parte usados para a função assistencial do Estado. O
modelo básico do Estado Social deve manter-se, mas
para isso tem de evoluir: o conceito de emprego
garantido e para a vida, mesmo que improdutivo
(parece que no quadro do Ministério da Agricultura
ainda há hoje 15 desmontadores de porcos!). Morreu
de vez a falácia de que é possível na Europa
competir globalmente pagando o preço de subemprego
endémico. E com ela foi-se também a falácia de que o
défice público é irrelevante.
Em quinto lugar, é essencial uma acção determinada
da parte dos poderes públicos e dos opinion makers
tendente a motivar os mais ricos e mais beneficiados
pela fortuna para que atribuam à luta contra a
pobreza a mesma prioridade que atribuem às casas e
quintas de lazer, aos barcos e aos aviões, ao
mecenato cultural e às legítimas vaidades deste
mundo. Há mais de um ano louvei aqui João Rendeiro
pela criação da EIS (Empresários pela Inclusão
Social).
Infelizmente, que eu saiba, a sua atitude não foi
seguida. E, só para dar dois exemplos, se Joe
Berardo fizesse um leilão de parte da sua colecção
para criar um fundo de luta contra a pobreza ou se
Jardim Gonçalves abdicasse a favor dos pobres de uma
parte substancial dos seus (legítimos) recursos
financeiros (apesar de não os ter usado, segundo
parece, para ajudar um filho em dificuldades) talvez
outros se sentissem envergonhados por nada fazerem e
as coisas começassem a mudar. Advogado