Público - 17 Out 07

Dia Mundial da Erradicação da Pobreza
Ana Cristina Pereira

Reportagem: Miriam saiu do bairro e abriu um salão de cabeleireiro

Olhando para ela, luminosa no cabeleireiro ainda a cheirar a novo, ninguém diria, mas passou "muitas necessidades". Lembra-se de ver a mãe "dar e não comer". Sozinha, a mãe, Adelaide, criou quatro filhos. "Pagava as contas, não era como muitos vizinhos" adeptos da ligação eléctrica. No prédio mora uma família com ligação clandestina há 15 anos.

Adelaide fugira de Angola com três filhos pequenos. O novo companheiro dava-lhe mau viver e ela depressa se livrou dele e não tornou a querer saber de outro. Não dispunha de grande tempo para os rebentos. Fazia de tudo para pôr sopa na mesa - foi cozinheira, churrasqueira, empregada de limpeza.

Miriam cresceu no Bairro do Lagarteiro, miséria acantonada na zona Oriental do Porto.

Era "muito rebelde". "Não fumava", respondia torto, fugia, brincava na rua até tarde, já noite. Por ordem do Tribunal de Família e Menores, estudou no Corpus Christi dos dez aos 14 anos. Foi ali que aprender a cozinhar, a costurar, a saber estar. Saiu dali com vontade de se superar, já não se sentia parte do grupo "dos que não querem fazer nada pela vida". Fez o curso de "empregada comercial de materiais de construção (que lhe deu equivalência ao 9.º ano), dizendo: "Não quero ser empregada de ninguém!" Podia ela sonhar com outra coisa? Aos 13 anos fizera um curso de manequim às escondidas (a mãe descobriu ao receber uma factura de 300 contos, que teve de pagar, com muito custo, às prestações). Findo o 9.º, dedicou-se às passagens de modelos, empregou-se numa loja de roupa.

Roía-a a vergonha de morar no bairro. O estigma parecia-lhe excessivo, ainda mais há dez anos com as milícias populares a estourar. Chegou "a gerente", ficou sem tempo para a família, para o namoro. "Trabalhava 12 horas por dia, tinha 21 anos. Para ser empregada de balcão o que conta é o físico, a beleza; eu já era gerente e gostava era de ser cabeleireira."

E se conciliasse o trabalho na loja com os estudos? Queria entrar às 9h00 e sair às 18h00, a tempo de frequentar as aulas que tinham início às 19h00, não chegou a acordo com a entidade patronal. Refilou, foi despedida, chorou, protestou junto do Tribunal do Trabalho. Não desistiu. O sistema estendeu-lhe a mão como já antes o fizera e ela agarrou-a.

Tirou o curso de cabeleireira através do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Depois, tirou o Certificado de Aptidão Pedagógica do IEFP para poder dar aulas.

Ainda tentou dar aulas, mas não se adaptou. Desempregada, "sem rumo", olhava para uma conhecida com 47 anos que só há dois conseguiu abrir o seu próprio salão. Não queria ter de esperar uma vida. De repente, a mãe recebeu uma carta. Não lhe queriam renovar a autorização de residência, Adelaide desesperava só de imaginar um quadro de deportação e os filhos desesperavam com ela.

Naquele desespero, Miriam bateu nos serviços sociais da junta de freguesia de Campanhã. Desabafou. A certa altura, perguntou se era elegível para Rendimento Social de Inserção (RSI). Era. Mas não resolveu descansar à sombra da bananeira. Apresentou um projecto ao programa Iniciativa Local de Emprego. Andou sete meses à procura de um local. Pediu um empréstimo para comprar o material, fazer as obras, começar a trabalhar.

O Cabeleireiro Miriam Gama abriu em Abril. "Esforcei-me, não me acomodei. Como sempre vi a minha mãe lutar, também não me imagino sem fazer nada", comenta frente a umas encomendas. A diferença entre ambas? A orgulhosa e esbelta Miriam teve "ajuda para tirar os três cursos", para suportar o desemprego, para criar a sua empresa, realizar o seu sonho. Já deixou o bairro. Agora, retribui, paga impostos.