Dia Mundial da Erradicação da Pobreza
Ana Cristina Pereira
Reportagem: Miriam saiu do bairro e abriu um salão
de cabeleireiro
Olhando para ela, luminosa no cabeleireiro ainda a
cheirar a novo, ninguém diria, mas passou "muitas
necessidades". Lembra-se de ver a mãe "dar e não
comer". Sozinha, a mãe, Adelaide, criou quatro
filhos. "Pagava as contas, não era como muitos
vizinhos" adeptos da ligação eléctrica. No prédio
mora uma família com ligação clandestina há 15 anos.
Adelaide fugira de Angola com três filhos pequenos.
O novo companheiro dava-lhe mau viver e ela depressa
se livrou dele e não tornou a querer saber de outro.
Não dispunha de grande tempo para os rebentos. Fazia
de tudo para pôr sopa na mesa - foi cozinheira,
churrasqueira, empregada de limpeza.
Miriam cresceu no Bairro do Lagarteiro, miséria
acantonada na zona Oriental do Porto.
Era "muito rebelde". "Não fumava", respondia torto,
fugia, brincava na rua até tarde, já noite. Por
ordem do Tribunal de Família e Menores, estudou no
Corpus Christi dos dez aos 14 anos. Foi ali que
aprender a cozinhar, a costurar, a saber estar. Saiu
dali com vontade de se superar, já não se sentia
parte do grupo "dos que não querem fazer nada pela
vida". Fez o curso de "empregada comercial de
materiais de construção (que lhe deu equivalência ao
9.º ano), dizendo: "Não quero ser empregada de
ninguém!" Podia ela sonhar com outra coisa? Aos 13
anos fizera um curso de manequim às escondidas (a
mãe descobriu ao receber uma factura de 300 contos,
que teve de pagar, com muito custo, às prestações).
Findo o 9.º, dedicou-se às passagens de modelos,
empregou-se numa loja de roupa.
Roía-a a vergonha de morar no bairro. O estigma
parecia-lhe excessivo, ainda mais há dez anos com as
milícias populares a estourar. Chegou "a gerente",
ficou sem tempo para a família, para o namoro.
"Trabalhava 12 horas por dia, tinha 21 anos. Para
ser empregada de balcão o que conta é o físico, a
beleza; eu já era gerente e gostava era de ser
cabeleireira."
E se conciliasse o trabalho na loja com os estudos?
Queria entrar às 9h00 e sair às 18h00, a tempo de
frequentar as aulas que tinham início às 19h00, não
chegou a acordo com a entidade patronal. Refilou,
foi despedida, chorou, protestou junto do Tribunal
do Trabalho. Não desistiu. O sistema estendeu-lhe a
mão como já antes o fizera e ela agarrou-a.
Tirou o curso de cabeleireira através do Instituto
de Emprego e Formação Profissional (IEFP). Depois,
tirou o Certificado de Aptidão Pedagógica do IEFP
para poder dar aulas.
Ainda tentou dar aulas, mas não se adaptou.
Desempregada, "sem rumo", olhava para uma conhecida
com 47 anos que só há dois conseguiu abrir o seu
próprio salão. Não queria ter de esperar uma vida.
De repente, a mãe recebeu uma carta. Não lhe queriam
renovar a autorização de residência, Adelaide
desesperava só de imaginar um quadro de deportação e
os filhos desesperavam com ela.
Naquele desespero, Miriam bateu nos serviços sociais
da junta de freguesia de Campanhã. Desabafou. A
certa altura, perguntou se era elegível para
Rendimento Social de Inserção (RSI). Era. Mas não
resolveu descansar à sombra da bananeira. Apresentou
um projecto ao programa Iniciativa Local de Emprego.
Andou sete meses à procura de um local. Pediu um
empréstimo para comprar o material, fazer as obras,
começar a trabalhar.
O Cabeleireiro Miriam Gama abriu em Abril.
"Esforcei-me, não me acomodei. Como sempre vi a
minha mãe lutar, também não me imagino sem fazer
nada", comenta frente a umas encomendas. A diferença
entre ambas? A orgulhosa e esbelta Miriam teve
"ajuda para tirar os três cursos", para suportar o
desemprego, para criar a sua empresa, realizar o seu
sonho. Já deixou o bairro. Agora, retribui, paga
impostos.