Perdoem o atrevimento: e que tal
uma IV República? José Manuel Fernandes
Menezes quer rever a Constituição. E o tema não deve
ser tabu se considerarmos que a nossa actual III
República está cansada. Porém não devemos esquecer
que uma Constituição é sobre as regras da
democracia, não sobre os fins da política
Primeiro que tudo, um aviso à
navegação: este editorial é uma provocação. Mas não
gratuita. Vamos a ele.
No recente Congresso do PSD, o XXX
(trinta, em 33 anos, é obra, admiti-se), o novo
líder prometeu propor uma nova Constituição. Isso
mesmo: não uma revisão constitucional, mas uma nova
Constituição. Novinha em folha.
A ideia, mesmo que pouco perceptível
pelos que medem o nível de cultura política pelo
barómetro do número de telenovelas, de jornais
desportivos ou de revistas cor-de-rosa que lêem, não
devia ser atirada borda fora com a ligeireza de
quem, nesta matéria, fala de cátedra. É certo que
nesta edição do PÚBLICO dois constitucionalistas -
Vital Moreira e Paulo Mota Pinto - sublinham, com
argumentos que não se devem menosprezar, algumas das
propostas concretas de Luís Filipe Menezes. Mas isso
não chega para fazer da Constituição um tema tabu.
Olhando para o nosso texto
constitucional é bom reconhecer: não só não é
perfeito, como em alguns pontos viola um dos
princípios básicos da democracia liberal. Ou, para
ser mais claro: uma Constituição deve ser sobre os
meios de Governo, não sobre os objectivos do
Governo. Uma Constituição deve estabelecer regras,
não fins a atingir.
Tem-se dito que a nossa
Constituição, depois de devidamente expurgada de
muitos pontos que a amarravam a fins, apenas
consente, no seu preâmbulo, uma divagação com valor
meramente histórico sobre "Portugal a caminho do
socialismo". É mentira: muitos dos pontos da nossa
Constituição são programáticos. É o caso do art.º
64, onde se estabelece um "serviço nacional de saúde
universal e geral (...) tendencialmente gratuito".
Ou do art.º 74, onde se escreve que incumbe ao
Estado "estabelecer progressivamente a gratuitidade
de todos os graus de ensino"; ou ainda do art.º 54,
onde se estabelece que é direito das comissões de
trabalhadores "exercer o controlo de gestão nas
empresas".
Como é público e notório, estes
artigos da nossa lei fundamental não estão a ser
cumpridos: arranjou-se sim artifícios para que as
leis de que o país necessitava passassem no Tribunal
Constitucional. Uma mentira piedosa, se bem que
muito útil, pois se tal não tivesse ocorrido o caos
orçamental e económico ainda seria maior.
Daí que se deva colocar, apenas por
uma atitude de bom senso, a questão de saber se 33
anos depois do 25 de Abril, mais de uma geração
passada sobre a aprovação de uma Constituição
híbrida (metade dos artigos aprovados pelo PS e pelo
PSD, metade aprovados pelo PS e pelo PCP,
caricaturando), esta não deve ser reinventada.
Ou seja: se depois da I República e da II República,
nenhuma delas de boa memória, a actual III República
não deve reinventar-se em... IV República.
Devendo uma Constituição tratar
sobretudo dos meios e não dos fins, uma nova
Constituição deveria ser mais seca, mais curta e
enfrentar os problemas que o actual regime nos
coloca. A saber: a governabilidade sem que nos
distanciemos do princípio do governo limitado; o
justo equilíbrio entre o exercício do poder
legitimado democraticamente e o seu controlo pelos
cidadãos, pela opinião pública, pelas magistraturas,
assim como a sua repartição por instâncias
executivas centrais e regionais e órgãos de
soberania que só por excepção devem poder estar sob
a jurisdição do mesmo partido; a necessidade de
reaproximar os cidadãos da gestão dos seus
interesses comuns por via da participação e da
representação política.
Por isso, aqui se deixam algumas provocações:
a) Por que não esquecer a
regionalização "administrativa" com poderes
executivos e assumir que, no país, existem regiões
que podem ter representação política como corpo
legislativo? (sugestão: criação de uma segunda
câmara, com dois senadores por cada NUT 3, sendo que
a sua eleição e a duração dos seus mandatos seriam
desencontrados da eleição da primeira câmara);
b) Por que não repensar os poderes
presidenciais? (sugestão: se o Presidente é eleito
por mais de 50 por cento dos votos, um veto
presidencial só pode ser revertido por um número de
deputados que representem pelo menos 50 por cento do
eleitorado);
c) Por que não assumir na
Constituição que as funções desconcentradas do
Estado são funções descentralizadas para as
autarquias locais? (sugestão: transferência de
competências em áreas como a saúde, a educação,
parte da política laboral e fiscal, para as
autarquias locais, contrariando a unicidade do que
Lisboa impõe);
d) Finalmente, por que não assumir
que a geração de hoje não pode endividar-se pela
geração de amanhã, limitando na lei fundamental os
défices públicos a todos os níveis?
Utopia? Disparate? Deixem os portugueses
pronunciar-se...