Público - 16 Out 07

Perdoem o atrevimento: e que tal uma IV República?
José Manuel Fernandes


Menezes quer rever a Constituição. E o tema não deve ser tabu se considerarmos que a nossa actual III República está cansada. Porém não devemos esquecer que uma Constituição é sobre as regras da democracia, não sobre os fins da política

Primeiro que tudo, um aviso à navegação: este editorial é uma provocação. Mas não gratuita. Vamos a ele.

No recente Congresso do PSD, o XXX (trinta, em 33 anos, é obra, admiti-se), o novo líder prometeu propor uma nova Constituição. Isso mesmo: não uma revisão constitucional, mas uma nova Constituição. Novinha em folha.

A ideia, mesmo que pouco perceptível pelos que medem o nível de cultura política pelo barómetro do número de telenovelas, de jornais desportivos ou de revistas cor-de-rosa que lêem, não devia ser atirada borda fora com a ligeireza de quem, nesta matéria, fala de cátedra. É certo que nesta edição do PÚBLICO dois constitucionalistas - Vital Moreira e Paulo Mota Pinto - sublinham, com argumentos que não se devem menosprezar, algumas das propostas concretas de Luís Filipe Menezes. Mas isso não chega para fazer da Constituição um tema tabu.

Olhando para o nosso texto constitucional é bom reconhecer: não só não é perfeito, como em alguns pontos viola um dos princípios básicos da democracia liberal. Ou, para ser mais claro: uma Constituição deve ser sobre os meios de Governo, não sobre os objectivos do Governo. Uma Constituição deve estabelecer regras, não fins a atingir.

Tem-se dito que a nossa Constituição, depois de devidamente expurgada de muitos pontos que a amarravam a fins, apenas consente, no seu preâmbulo, uma divagação com valor meramente histórico sobre "Portugal a caminho do socialismo". É mentira: muitos dos pontos da nossa Constituição são programáticos. É o caso do art.º 64, onde se estabelece um "serviço nacional de saúde universal e geral (...) tendencialmente gratuito". Ou do art.º 74, onde se escreve que incumbe ao Estado "estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino"; ou ainda do art.º 54, onde se estabelece que é direito das comissões de trabalhadores "exercer o controlo de gestão nas empresas".

Como é público e notório, estes artigos da nossa lei fundamental não estão a ser cumpridos: arranjou-se sim artifícios para que as leis de que o país necessitava passassem no Tribunal Constitucional. Uma mentira piedosa, se bem que muito útil, pois se tal não tivesse ocorrido o caos orçamental e económico ainda seria maior.

Daí que se deva colocar, apenas por uma atitude de bom senso, a questão de saber se 33 anos depois do 25 de Abril, mais de uma geração passada sobre a aprovação de uma Constituição híbrida (metade dos artigos aprovados pelo PS e pelo PSD, metade aprovados pelo PS e pelo PCP, caricaturando), esta não deve ser reinventada.
Ou seja: se depois da I República e da II República, nenhuma delas de boa memória, a actual III República não deve reinventar-se em... IV República.

Devendo uma Constituição tratar sobretudo dos meios e não dos fins, uma nova Constituição deveria ser mais seca, mais curta e enfrentar os problemas que o actual regime nos coloca. A saber: a governabilidade sem que nos distanciemos do princípio do governo limitado; o justo equilíbrio entre o exercício do poder legitimado democraticamente e o seu controlo pelos cidadãos, pela opinião pública, pelas magistraturas, assim como a sua repartição por instâncias executivas centrais e regionais e órgãos de soberania que só por excepção devem poder estar sob a jurisdição do mesmo partido; a necessidade de reaproximar os cidadãos da gestão dos seus interesses comuns por via da participação e da representação política.
Por isso, aqui se deixam algumas provocações:

a) Por que não esquecer a regionalização "administrativa" com poderes executivos e assumir que, no país, existem regiões que podem ter representação política como corpo legislativo? (sugestão: criação de uma segunda câmara, com dois senadores por cada NUT 3, sendo que a sua eleição e a duração dos seus mandatos seriam desencontrados da eleição da primeira câmara);

b) Por que não repensar os poderes presidenciais? (sugestão: se o Presidente é eleito por mais de 50 por cento dos votos, um veto presidencial só pode ser revertido por um número de deputados que representem pelo menos 50 por cento do eleitorado);

c) Por que não assumir na Constituição que as funções desconcentradas do Estado são funções descentralizadas para as autarquias locais? (sugestão: transferência de competências em áreas como a saúde, a educação, parte da política laboral e fiscal, para as autarquias locais, contrariando a unicidade do que Lisboa impõe);

d) Finalmente, por que não assumir que a geração de hoje não pode endividar-se pela geração de amanhã, limitando na lei fundamental os défices públicos a todos os níveis?
Utopia? Disparate? Deixem os portugueses pronunciar-se...