"Não quero dar ao meu filho a
educação que recebi"
Andreia Sanches
Chama-se Passo a Passo e é uma associação que faz
formação parental junto de famílias em risco. A
Fundação Gulbenkian apoia
A lista de tarefas a cumprir diariamente está
afixada na porta do quarto das filhas mais pequenas
de Natalina. "Nunca saio de casa sem: tomar banho;
tomar o pequeno-almoço; fazer a cama; arrumar o
quarto; lavar os dentes." Foi ali posta há mais de
um ano, por indicação de alguém que nessa altura mal
conheciam. E as crianças insurgiram-se. "Isto? Eu
não faço isto!"
Natalina tem 32 anos e seis filhos. Quatro têm entre
três e 10 anos, depois há uma adolescente de 12 que
foi recentemente encaminhada para uma instituição de
acolhimento de menores - "porque roubava os colegas"
- e um mais velho com 16. Natalina, viúva,
beneficiária do Rendimento Social de Inserção, tem
feito um esforço para aprender a tratar dos cinco
que continuam em casa.
"Era a minha mãe que costumava tratar das crianças",
desabafa. E quando a mãe morreu, Natalina
desorganizou-se. Os mais pequenos chegavam sujos às
aulas. O mais velho deixou de estudar. A filha
adolescente dava dores de cabeça ainda maiores.
Natalina não conseguia tratar dos seis ao mesmo
tempo. "Alguns faziam - e ainda fazem - chichi
durante a noite, mas eu acordava de manhã e tinha
que levar cada um a uma escola diferente e não
conseguia fazer tudo o que era preciso", desde logo
dar-lhes banho, mudar-lhes a roupa da noite.
As crianças não estavam bem cuidadas e o caso foi
assinalado pela Segurança Social. E há ano e meio
Natalina e os filhos passaram a receber regularmente
em casa as visitas das técnicas da Passo a Passo -
uma associação criada em 2000/01 por um grupo de
médicos, procuradores, juízes do Tribunal de Família
e assistentes sociais.
Os resultados da Passo a Passo, que faz formação
parental junto de famílias em risco, serviram de
inspiração à Fundação Calouste Gulbenkian, que já
este ano decidiu financiar mais entidades (para além
desta associação) que apostem na formação de pais.
Foram "as meninas da Passo a Passo" - como Natalina
lhes chama - que prepararam a lista das tarefas
afixada no quarto das crianças. "Nunca me deito sem:
fazer os T.P.C; jantar; preparar a mochila; arrumar
a roupa que vou vestir amanhã."
Também foram elas - Joana Graça, psicóloga, Tânia
Martins, Ana Marques e Sofia Duarte, assistentes
sociais - que aos poucos foram explicando a Natalina
como gerir uma casa com seis crianças, como tratar
delas de manhã, a que instituições recorrer. Para
além disso, a associação presta apoio quando ele é
preciso, pagando despesas de farmácia, ou com
produtos de higiene.
"Há famílias em que tem de se trabalhar mais a parte
da casa, porque por exemplo viviam em barracas,
foram realojadas e não se adaptaram bem, têm
melhores condições mas continuam a não ligar a água
e a luz, ou nunca se disponibilizaram a comprar mais
um colchão e dormem todos na mesma cama", diz Sofia
Duarte.
"Há outras que não vão ao centro de saúde, que não
levam as crianças às vacinas... e outras em que tem
que se trabalhar mais a questão da alimentação",
continua Tânia Martins. Há algum tempo, foi preciso
ensinar a uma mãe para que servia e como se punha um
supositório. Porque ela, na Guiné, de onde vinha,
nunca tinha visto um.
O filho mais velho de Natalina frequenta hoje um
curso profissional, os quatro mais pequenos passaram
a andar todos na mesma escola - "Levo-os todos os
dias, apanhamos um autocarro, depois outro
autocarro, mas chego sempre a horas." E os miúdos já
não se insurjem como dantes quando olham para a
lista das tarefas.
Quanto a Joana, Tânia, Sofia, deixaram de ser as
pessoas estranhas que fizeram a lista. "Geralmente
cria-se com estas famílias uma relação de
confiança", diz Sofia Duarte.
A casa de Natalina fica no Casal da Mira, um bairro
de realojamento social na Amadora. Só neste
concelho, a Passo a Passo dá formação parental a
quase 60 famílias. Na maior parte dos casos, as
situações são sinalizadas pelos tribunais ou pelas
comissões de protecção de crianças e jovens e dizem
respeito a pais e mães, na maioria carenciados, que
não conseguem organizar-se para dar os devidos
cuidados aos filhos, ou que estão em risco de perder
as crianças para instituições - ou, em casos mais
raros, que já as perderam mesmo mas têm esperança de
recuperá-las.
Mónica foi mãe aos 14
Perto de Natalina mora Mónica, 21 anos. Foi mãe aos
14 e acabou por ter de entregar o filho a um centro
de acolhimento quando ele ainda não tinha feito
três. Em Agosto passado, o juiz concordou que podia
ir buscá-lo desde que fosse devidamente acompanhada.
Cumpria finalmente algo essencial:
tinha casa.
Assim surgiu a Passo a Passo na vida da mãe
solteira. O menino está com seis anos, passou muito
tempo em centros de acolhimento, mas os laços com a
mãe nunca se perderam - ela nunca deixou de o
visitar diariamente - e a adaptação à nova vida foi
fácil.
As técnicas da Passo a Passo consideram que ela se
está a sair bem. Mónica também acha. Diz que para
ser melhor mãe só lhe falta um emprego. E quanto aos
cuidados com o filho, parece muito segura. "Não
quero dar ao meu filho a mesma educação que recebi.
Não quero que ele cresça com a revolta que eu tenho.
Apanhei muito."
Cada família tem as suas dificuldades, os seus
traumas. As necessidades em termos de formação nunca
são iguais, diz Tânia Martins. "Fazemos mapas com
tarefas diárias, encaminhamos para equipamentos
quando é necessário, como creches ou jardins de
infância, articulamentos com centros de saúde. Não
há um maneira só de fazer formação parental." E cada
pessoa tem o seu ritmo. Em média, cada agregado é
acompanhado por dois anos.
Natalina não conseguia tratar dos seis filhos ao
mesmo tempo e passou a receber regularmente em casa
as visitas das técnicas
60
A casa de Natalina fica no concelho da Amadora. Só
neste concelho, a Passo a Passo dá formação a quase
60 famílias