Público - 25 Out 06
Tolos mas nem tanto
José Manuel Fernandes
As justificações "técnicas" para introduzir
portagens nalgumas Scut são mentirosas e desonestas
O princípio das Scut é simples: "Constrói-se agora e
paga-se depois." Os privados investem, o Estado fica
a pagar-lhes uma renda de acordo com o tráfego
dessas vias. Ganhamos hoje as estradas, deixamos
para Orçamentos futuros o seu pagamento. Só que os
Orçamentos futuros já hoje não têm dinheiro
suficiente para suportar os encargos. A factura
revelou-se depressa bem pesada, tornando-se claro
que, sendo a manta curta, para tapar a cabeça
descobrem-se os pés. Por outras palavras: para pagar
as Scut tem de se cortar noutras rubricas. No Estado
social, por exemplo.
Não deve, pois, surpreender ninguém que José
Sócrates tenha sido obrigado a desdizer-se: afinal
as Scut, ou algumas das Scut, iriam pagar portagem.
E a arranjar argumentos "técnicos": as zonas
servidas por essas Scut já tinham alcançado um nível
de riqueza que não justificava a sua manutenção e
existiam alternativas onde o tempo consumido não
seria mais que 2,3 vezes superior ao gasto seguindo
pela via rápida.
Acontece que os estudos que serviram de base às
decisões anunciadas foram ontem divulgados.
Olhando-os com atenção, percebemos que estamos face
a uma manipulação grosseira dos números destinada a
justificar do ponto de vista "técnico" o que é
político: a quebra de mais uma promessa eleitoral.
Se não vejamos. Para justificar a inclusão das Scut
com origem no Porto, os estudos consideraram sempre
o rendimento do... Grande Porto. Como depois o
somaram aos das outras regiões e dividiram pelo
número de habitantes, conseguiram que todas essas
Scut entrassem no critério definido. Ou seja,
misturaram regiões onde o rendimento é superior à
média nacional com regiões onde este é inferior a
metade da média nacional - procedimento que é, no
mínimo, intelectualmente desonesto.
Porém, seguindo apenas este critério, duas outras
Scut teriam de ter portagens: a Via do Infante no
Algarve e a que liga Abrantes à Guarda, passando
pelo distrito do primeiro-ministro, Castelo Branco.
Não podia ser, pois colocar portagens na Via do
Infante implicaria que o Estado (que construiu e
pagou a maior parte desta via) teria de fazer esse
investimento e em 2006 não há quase dinheiro para
investimento, e colocar portagens a caminho do
distrito de José Sócrates estava fora de causa.
Introduziu-se então um outro critério para avaliar a
riqueza das regiões atravessadas: calcula o poder de
compra nos concelhos por onde passa a Scut. Esta
mudança de critério é difícil de entender, mas
utilizando-o tirou-se da lista a Auto-Estrada da
Beira Interior. Faltava tirar a Via do Infante, algo
difícil numa das regiões mais ricas do país.
Recorreu-se então ao critério do tempo gasto na via
alternativa. Segundo o IEP, nesta consumir-se-ia 2,4
vezes o tempo despendido para ir, pela auto-estrada,
da fronteira a Lagos. Como se chegou a este valor?
Utilizando softwares comerciais corrigidos pelo
"conhecimento empírico" do terreno, lê-se no
documento. Assim, por uma décima, a Via do Infante
livra-se das portagens. Acontece, porém, que ao
"conhecimento empírico" se devia antes chamar
"martelar" os números. Porquê? Porque, para desgraça
do Governo, o IEP encomendou um estudo a um
consultor privado, que percorreu o percurso nos dois
sentidos (em Agosto!) e, mesmo assim, conseguiu
chegar apenas a uma diferença de 0,9 em lugar do
excesso de 1,4 vezes que o IEP invoca.
O gato ficou escondido com o rabo de fora, e nos
estudos há muito mais alçapões. Só é pena que o
Governo julgue que todos são tolos. Não são. Pelo
que aos que sempre defenderam o princípio do
pagamento das portagens só resta pedir que o
Executivo vá pelo menos até ao fim e as introduza
também na Beira Interior e no Algarve. Seria mais
honesto e coerente, pois nem sempre gerir bem a
informação consegue evitar o inevitável: que se
perceba quando se está perante argumentos falaciosos
e mentirosos.