1. É claro que não estamos na Hungria, nem o actual
primeiro-ministro mentiu na campanha eleitoral para
chegar à maioria absoluta. Nada o obrigava a isso,
de resto, porque para lá chegar não era preciso
dizer praticamente nada. A situação era tudo, a
falência da fórmula anterior era patente e a
dissolução fez o resto. Tudo o que Sócrates terá
feito foi não dizer a verdade, ou o essencial dela.
E isso até se lhe perdoa, sendo o nosso sistema o
que é. Terá apenas incorrido num excesso de
voluntarismo ao ter-se permitido uns tantos
compromissos. Sobre os impostos o conclave de
economistas com que se reuniu (donde constavam
Campos e Cunha, Teodora Cardoso, Silva Lopes e o
actual ministro da Finanças) tê-lo-á elucidado a
tempo e podia pois ter evitado o assunto. Sobre as
Scut ainda teve a cautela daquela pequena ressalva
que ninguém notou, como também ninguém acredita que
o Grande Porto (e distritos adjacentes) se tenha
entretanto destacado do resto do território, a não
ser nas inscrições nos centros de emprego.
O que se passa com os desmentidos a que a
necessidade da poupança vai obrigando o Governo é
que o primeiro-ministro não está a encontrar o tom
certo. O país já interiorizou de tal maneira que
chegou a hora de pagar a factura que o melhor que
ele tinha a fazer, e de longe, era admitir que
também ele se via obrigado a rever as suas
expectativas e a anular alguns dos compromissos que
de boa-fé tinha assumido. Era uma forma de nos
compenetrar da profundidade dos problemas com que
nos debatemos e de melhor nos convencer sobre a
seriedade com que os encara. E era sobretudo
preferível em relação à atitude com que tem reagido
às críticas. A pretensão de que nunca se engana, que
parece assaltar a psicologia de Sócrates, já nós
sabemos como é que acaba. E vai instalando, a pouco
e pouco, um clima de crispação que é o que menos se
aconselha para os tempos de aflição e angústia que
muita gente está infelizmente a atravessar.
Sócrates podia aprender sobre os defeitos da
teimosia com o que se passa nos exames de aptidão à
universidade. Era de tal modo previsível que até
este vosso amigo se atreveu a augurar o que veio
mesmo a suceder (neste jornal, a 16 de Agosto). De
facto, "não devia ter acontecido", mas aconteceu. O
Ministério da Educação produziu um exame que se veio
a revelar muito difícil, e, em vez de arrostar com
as críticas, identificar os responsáveis e reformar
a sua "máquina" resolveu dar uma "segunda
oportunidade" que a lei não previa, e só depois
alterou a lei.
Para aqui pouco importam as pressões a que a
ministra terá sido sujeita, porque era evidente que
aqueles que se sentissem prejudicados pela alteração
das regras em plenos exames podiam recorrer aos
tribunais e que estes lhes dariam provavelmente
razão. O caso é uma parábola sobre a atitude geral
do Governo. Fazer o que devia ser feito obrigava a
uma humildade perante o erro, e até a uma verdadeira
coragem, que é a coragem moral de assumir as falhas
próprias. Mas preservava a justiça no tratamento
igual para todos os alunos, que é a primeira
preocupação que o Estado deve ter nas suas relações
com os cidadãos.
2. Interpretar o sentido da palavra "rigor" a
propósito do próximo Orçamento é um exercício que
talvez convenha fazer. Por um lado, já se percebeu
que a generalidade das pessoas vai pagar mais e
receber menos. Ao mesmo tempo que sobem impostos,
aumentam taxas, cessam benefícios e o Estado aumenta
a sua receita fiscal, há vários serviços que ficam
mais caros ou se retiram de certas partes do
território. Nesse sentido, todos sentem o rigor
orçamental. Mas a questão que um número crescente
está a colocar é a de saber se o Governo planeou com
rigor as mudanças que se traduzem nesses
sacrifícios. A avaliar pelas sondagens, persiste uma
maioria que confia no Governo, e em democracia isso
é obviamente importante para quem está no poder.
Mas para quem é governado o que releva é saber se o
rigor que interessa, o do planeamento das reformas
de que o Estado necessita, está ou não por detrás
deste Orçamento. Ora é nesse ponto essencial que um
pessimismo começa a grassar. Há dias escrevia Vasco
Pulido Valente que Sócrates não opta pela
"libertação da sociedade de um Estado que a sufoca"
e que se vê apenas obrigado a procurar um "Estado-providência
que gaste menos". Eu diria menos, porque o que me
parece é que o primeiro-ministro não chega a ter a
esse respeito opções definidas. É evidente que esta
legislatura está a passar ao lado de um debate
partidário sobre as funções do Estado (e essa podia
ser a principal contribuição da oposição para este
longo período sem eleições), e do lado do Governo
não tem existido convicção suficiente para encetar
esse caminho.
Uma coisa é certa. Se a aceitação de que a despesa
tem de diminuir não servir para o abandono de
algumas funções públicas, nunca desceremos da metade
do produto nacional a ser consumida pelo Estado e
seremos sempre mais pobres do que os outros
europeus. Continuaremos a festejar diminutas retomas
do crescimento, quando toda a Europa já está a
crescer muito mais e nós somos apenas o 23º em 25
nessa recuperação.
É certo que há a excepção da Saúde, onde o
desmantelamento de certos serviços será
inevitavelmente preenchido pela iniciativa privada.
Mas até aí a contradição com o que se passa noutras
áreas sociais denuncia a ausência de uma orientação.
Na Educação, onde um certo entendimento sobre o
papel do Estado e dos privados podia com mais
propriedade levar a um redimensionamento do serviço
público, a poupança e a racionalização passam
sobretudo pelo fecho de mais de metade das escolas
primárias, precisamente em locais onde o privado
dificilmente investirá e onde só o Estado pode
valer. A mensagem para essas populações é clara:
tratem de sair, porque as aldeias vão um dia morrer.
Ao contrário, na Saúde concentram-se as urgências
nos centros do litoral e anunciam-se urgências para
o interior. A mensagem já é outra: fiquem nas vossas
áreas, porque onde a iniciativa privada não vê
rentabilidade vai o Estado em vosso socorro. Duas
mensagens contraditórias que denunciam uma chefia do
Governo sem um verdadeiro pensamento sobre o país. E
que vive, como diria Jorge Sampaio, apenas obcecada
com o défice. Engenheiro civil
P.S. - Li algures que o Governo desrespeitou o
mercado quando recuou no aumento da electricidade.
Para quem defende uma economia de mercado, como é o
meu caso, poucas vezes vi "notícia" mais
desajeitada. Quem é que vai explicar a uma família,
em que a factura da energia já tem um peso
desproporcionado, que um mercado onde só conhece um
fornecedor dita aumentos de 16 por cento? Quando
sabe que em Espanha há um verdadeiro mercado com
vários fornecedores a operar e a electricidade é
sensivelmente mais barata?