Público - 25 Out 06

Humildade precisa-se

Manuel Queiró

1. É claro que não estamos na Hungria, nem o actual primeiro-ministro mentiu na campanha eleitoral para chegar à maioria absoluta. Nada o obrigava a isso, de resto, porque para lá chegar não era preciso dizer praticamente nada. A situação era tudo, a falência da fórmula anterior era patente e a dissolução fez o resto. Tudo o que Sócrates terá feito foi não dizer a verdade, ou o essencial dela. E isso até se lhe perdoa, sendo o nosso sistema o que é. Terá apenas incorrido num excesso de voluntarismo ao ter-se permitido uns tantos compromissos. Sobre os impostos o conclave de economistas com que se reuniu (donde constavam Campos e Cunha, Teodora Cardoso, Silva Lopes e o actual ministro da Finanças) tê-lo-á elucidado a tempo e podia pois ter evitado o assunto. Sobre as Scut ainda teve a cautela daquela pequena ressalva que ninguém notou, como também ninguém acredita que o Grande Porto (e distritos adjacentes) se tenha entretanto destacado do resto do território, a não ser nas inscrições nos centros de emprego.
O que se passa com os desmentidos a que a necessidade da poupança vai obrigando o Governo é que o primeiro-ministro não está a encontrar o tom certo. O país já interiorizou de tal maneira que chegou a hora de pagar a factura que o melhor que ele tinha a fazer, e de longe, era admitir que também ele se via obrigado a rever as suas expectativas e a anular alguns dos compromissos que de boa-fé tinha assumido. Era uma forma de nos compenetrar da profundidade dos problemas com que nos debatemos e de melhor nos convencer sobre a seriedade com que os encara. E era sobretudo preferível em relação à atitude com que tem reagido às críticas. A pretensão de que nunca se engana, que parece assaltar a psicologia de Sócrates, já nós sabemos como é que acaba. E vai instalando, a pouco e pouco, um clima de crispação que é o que menos se aconselha para os tempos de aflição e angústia que muita gente está infelizmente a atravessar.
Sócrates podia aprender sobre os defeitos da teimosia com o que se passa nos exames de aptidão à universidade. Era de tal modo previsível que até este vosso amigo se atreveu a augurar o que veio mesmo a suceder (neste jornal, a 16 de Agosto). De facto, "não devia ter acontecido", mas aconteceu. O Ministério da Educação produziu um exame que se veio a revelar muito difícil, e, em vez de arrostar com as críticas, identificar os responsáveis e reformar a sua "máquina" resolveu dar uma "segunda oportunidade" que a lei não previa, e só depois alterou a lei.
Para aqui pouco importam as pressões a que a ministra terá sido sujeita, porque era evidente que aqueles que se sentissem prejudicados pela alteração das regras em plenos exames podiam recorrer aos tribunais e que estes lhes dariam provavelmente razão. O caso é uma parábola sobre a atitude geral do Governo. Fazer o que devia ser feito obrigava a uma humildade perante o erro, e até a uma verdadeira coragem, que é a coragem moral de assumir as falhas próprias. Mas preservava a justiça no tratamento igual para todos os alunos, que é a primeira preocupação que o Estado deve ter nas suas relações com os cidadãos.

2. Interpretar o sentido da palavra "rigor" a propósito do próximo Orçamento é um exercício que talvez convenha fazer. Por um lado, já se percebeu que a generalidade das pessoas vai pagar mais e receber menos. Ao mesmo tempo que sobem impostos, aumentam taxas, cessam benefícios e o Estado aumenta a sua receita fiscal, há vários serviços que ficam mais caros ou se retiram de certas partes do território. Nesse sentido, todos sentem o rigor orçamental. Mas a questão que um número crescente está a colocar é a de saber se o Governo planeou com rigor as mudanças que se traduzem nesses sacrifícios. A avaliar pelas sondagens, persiste uma maioria que confia no Governo, e em democracia isso é obviamente importante para quem está no poder.
Mas para quem é governado o que releva é saber se o rigor que interessa, o do planeamento das reformas de que o Estado necessita, está ou não por detrás deste Orçamento. Ora é nesse ponto essencial que um pessimismo começa a grassar. Há dias escrevia Vasco Pulido Valente que Sócrates não opta pela "libertação da sociedade de um Estado que a sufoca" e que se vê apenas obrigado a procurar um "Estado-providência que gaste menos". Eu diria menos, porque o que me parece é que o primeiro-ministro não chega a ter a esse respeito opções definidas. É evidente que esta legislatura está a passar ao lado de um debate partidário sobre as funções do Estado (e essa podia ser a principal contribuição da oposição para este longo período sem eleições), e do lado do Governo não tem existido convicção suficiente para encetar esse caminho.
Uma coisa é certa. Se a aceitação de que a despesa tem de diminuir não servir para o abandono de algumas funções públicas, nunca desceremos da metade do produto nacional a ser consumida pelo Estado e seremos sempre mais pobres do que os outros europeus. Continuaremos a festejar diminutas retomas do crescimento, quando toda a Europa já está a crescer muito mais e nós somos apenas o 23º em 25 nessa recuperação.
É certo que há a excepção da Saúde, onde o desmantelamento de certos serviços será inevitavelmente preenchido pela iniciativa privada. Mas até aí a contradição com o que se passa noutras áreas sociais denuncia a ausência de uma orientação. Na Educação, onde um certo entendimento sobre o papel do Estado e dos privados podia com mais propriedade levar a um redimensionamento do serviço público, a poupança e a racionalização passam sobretudo pelo fecho de mais de metade das escolas primárias, precisamente em locais onde o privado dificilmente investirá e onde só o Estado pode valer. A mensagem para essas populações é clara: tratem de sair, porque as aldeias vão um dia morrer.
Ao contrário, na Saúde concentram-se as urgências nos centros do litoral e anunciam-se urgências para o interior. A mensagem já é outra: fiquem nas vossas áreas, porque onde a iniciativa privada não vê rentabilidade vai o Estado em vosso socorro. Duas mensagens contraditórias que denunciam uma chefia do Governo sem um verdadeiro pensamento sobre o país. E que vive, como diria Jorge Sampaio, apenas obcecada com o défice. Engenheiro civil

P.S. - Li algures que o Governo desrespeitou o mercado quando recuou no aumento da electricidade. Para quem defende uma economia de mercado, como é o meu caso, poucas vezes vi "notícia" mais desajeitada. Quem é que vai explicar a uma família, em que a factura da energia já tem um peso desproporcionado, que um mercado onde só conhece um fornecedor dita aumentos de 16 por cento? Quando sabe que em Espanha há um verdadeiro mercado com vários fornecedores a operar e a electricidade é sensivelmente mais barata?