Diário de Notícias - 21 Out 06
Proteger a
natureza e proteger a vida humana
Francisco Sarsfield
Cabral
A protecção da natureza, do ambiente e dos
equilíbrios ecológicos é uma preocupação dominante
do nosso tempo. Ainda bem, pois a inconsciência de
muitos e a ânsia de lucro de alguns têm acumulado
ameaças sobre o futuro do nosso planeta. O
documentário de Al Gore sobre os efeitos do
aquecimento global, por exemplo, é um alerta
angustiado para que se evite o desastre enquanto é
tempo.
É verdade que, por vezes, também se manifesta algum
fundamentalismo ecologista, esquecendo ser a miséria
das pessoas a pior das poluições. Mas reconheça-se
ser difícil para os ecologistas enfrentar poderosos
interesses económicos imediatos, invocando o
argumento moral de salvaguardar o bem-estar de
gerações futuras.
Curiosamente, o empenho de tanta gente em preservar
espécies animais e vegetais conhecidas apenas de
alguns especialistas não se sente quanto à protecção
do embrião e do feto na barriga da mãe. E, aí, o que
está em causa não é apenas natureza nem vida animal
ou vegetal, mas vida humana.
O contraste entre essas duas atitudes foi salientado
numa recente entrevista de António Marujo ao bispo
de Leiria-Fátima, D. António Marto (Público,
15-10-06).
O contraste é tanto mais de notar quanto o progresso
da ciência e das tecnologias médicas permite, hoje
(e cada vez mais), saber e até ver o que se passa
com o feto. Não é, afinal, um "monte de células",
como já lhe chamaram, mas um ser com todas as
características genéticas que o acompanharão pela
vida fora.
Compreendo que partidários da liberalização do
aborto se sintam insultados quando lhes chamam
assassinos. Na sua perspectiva, um aborto não é um
homicídio, porque não consideram que põe termo a uma
vida humana. E a sociedade, actual e passada,
dá-lhes alguns motivos para essa atitude.
Há uma antiquíssima tradição de ignorância e, até,
de desprezo pela vida pré-natal, que influencia a
consciência das pessoas. Na tradição do direito
civil, por exemplo, não é concedida personalidade
jurídica ao bebé antes de ele nascer. Ou seja, pesa
na sociedade e nas suas instituições a
desvalorização da vida intra-uterina.
Por isso, chamar criminoso a quem defenda o "sim" no
próximo referendo é injusto e contraproducente. Há,
de facto, uma ausência de unanimidade em todo o
mundo sobre o estatuto do feto, o que requer um
debate sério sobre o problema. Uma discussão de
boa-fé e não gritarias histéricas.
Em democracia, ninguém pode impor aos outros o seu
ponto de vista, a menos que convença a maioria dos
cidadãos. Sobretudo em matéria que implique penas. O
aborto não é só uma questão de consciência: terá
sempre de haver uma posição legal do Estado,
definindo o que, para os tribunais, é e não é crime.
É assim preciso um consenso, tão amplo quanto
possível, mas pelo menos maioritário, de modo a
legitimar uma lei, seja ela qual for. Mas a
democracia dá-nos a possibilidade de lutar
publicamente pelas nossas ideias, ainda que
minoritárias, tentando persuadir a maioria dos
cidadãos a adoptá-las.
Para mim, é arbitrário escolher um momento da vida
do feto antes do qual o aborto é permitido e depois
do qual é crime. Parece-me mais lógico respeitar a
vida desde o momento da concepção.
E para quem tenha dúvidas sobre o estatuto ético do
feto, julgo de aplicar, por analogia, um imperativo
muito utilizado pelos ecologistas: a precaução,
teorizada há quase 30 anos pelo filósofo alemão Hans
Jonas no seu Princípio da Responsabilidade.
Na incerteza sobre as consequências dos nossos actos
ou omissões, a ética aconselha não correr riscos.
Neste caso, o risco de matar uma vida.
Não é essa, claro, a opinião de muita gente, e eu
respeito-a. Apenas procuro mudá-la.
Afinal, durante séculos e séculos considerou-se
normal a escravatura. Tirando honrosas excepções, o
cristianismo conviveu sem problemas com essa
realidade social ao longo de quase dois mil anos.
Havia, até, quem julgasse a escravatura uma
instituição benéfica para os escravos, seres por
natureza inferiores.
Hoje, porém, toda a gente considera a escravatura um
crime horrendo. Como, por outro lado, se desenvolve
uma consciência ecológica inexistente há décadas.
Com a ajuda da crescente visibilidade da vida
intra-uterina, talvez daqui a algum tempo se alterem
muitas opiniões que actualmente encaram o aborto
como mero problema de saúde pública.
E reconheçam, então, estar aí em jogo, não sobretudo
o corpo da mulher, mas antes de mais a vida de
terceiros.