Público - 19 Out 06

O défice manda...

José Manuel Fernandes

Não há como o choque da realidade e a falta de dinheiro para os políticos abandonarem promessas eleitorais

Por fim algum bom senso - mas ainda insuficiente. Três das sete auto-estradas sem portagens, vulgarmente conhecidas por Scut, vão passar a ter portagens em 2007. Quando falta o dinheiro para se atingirem os objectivos de contenção do défice orçamental, vai-se poupar onde desde sempre se devia ter poupado, neste caso fazendo com que os utilizadores dessas infra-estruturas paguem o que devem pagar. Seria bom, no entanto, que se fosse coerente e levasse a decisão até às últimas consequências.
Comecemos pois por recordar a promessa eleitoral, depois transcrita no programa de Governo. Rezava assim: "Quanto às Scut, deverão permanecer como vias sem portagem enquanto se mantiverem as condições que justificaram, em nome da coesão nacional e territorial, a sua implementação, quer no que se refere aos indicadores de desenvolvimento sócio-económico das regiões em causa, quer no que diz respeito às alternativas de oferta no sistema rodoviário."
Que mudou desde a altura em que a promessa foi feita no Norte Litoral, no Grande Porto e na Costa da Prata, as regiões afectadas pela medida anunciada por Mário Lino? Substancialmente, nada. Essas regiões continuam a divergir da média do rendimento nacional, sendo que a sua posição relativa até se terá degradado. Passaram a existir rodovias alternativas? Não. Mais: por que razão se opta por fazer pagar os utilizadores das auto-estradas dessas três regiões, que nem são das mais ricas do país, e se continua a isentar de pagamento os que circulam pela Via do Infante, no Algarve, a segunda região do Continente com maior rendimento per capita? Por não existirem alternativas? Não, pois bastará a Mário Lino ir do Porto a Viana ou do Porto a Aveiro pelas velhas estradas nacionais para perceber que estas não são alternativa a nada.
O problema é outro e antigo: as Scut são desde o início um disparate, uma asneira devida às habilidades inventadas no tempo das vacas gordas mas impossíveis de pagar em época de vacas magras. Até porque, como provam os estudos habitualmente invocados para sustentar a importância destes investimentos - como os dos professores Marvão Pereira e Jorge Andraz -, se os investimentos em infra-estruturas rodoviárias têm algum retorno em termos de desenvolvimento económico (apesar de se dever comparar esse retorno com o que proporcionariam investimentos na ferrovia...), a verdade é que eles beneficiam mais as regiões mais ricas, como a de Lisboa, do que aquelas que realmente servem.
Mais: desde o início que a opção por construir estas vias com "portagens virtuais" pagas por todos os cidadãos, pobres ou ricos, com carro ou sem carro, pecou por incoerência. Senão repare-se que as auto-estradas que atravessam o Alentejo, uma das regiões mais deprimidas do país, têm todas portagens, ao contrário das que servem distritos mais dinâmicos como os de Castelo Branco ou da Guarda. Será por as velhas estradas alentejanas terem menos curvas? Talvez. Mas então como justificar que o mesmo não se passe noutras regiões onde as vias, se bem que menos perfeitas, podem ser consideradas alternativas e, sobretudo, as caríssimas Scut são estradas do "lá vem um"?
Não há de facto nada como o choque da realidade e da falta de dinheiro para obrigar os políticos a abandonarem promessas eleitorais. Mas ao menos valha-nos isso: pior seria insistir num disparate que já custou demasiado ao erário público e consumiu recursos que teriam sido muito melhor utilizados noutras frentes. Pelo que, promessa incumprida por promessa incumprida, seja talvez altura de admitir que tanto a Ota como o TGV são coisas para esquecer. É que, tal como todos os almoços, esses devaneios são tudo menos grátis...