Não há como o choque da realidade
e a falta de dinheiro para os políticos abandonarem
promessas eleitorais
Por fim algum bom senso - mas ainda insuficiente.
Três das sete auto-estradas sem portagens,
vulgarmente conhecidas por Scut, vão passar a ter
portagens em 2007. Quando falta o dinheiro para se
atingirem os objectivos de contenção do défice
orçamental, vai-se poupar onde desde sempre se devia
ter poupado, neste caso fazendo com que os
utilizadores dessas infra-estruturas paguem o que
devem pagar. Seria bom, no entanto, que se fosse
coerente e levasse a decisão até às últimas
consequências.
Comecemos pois por recordar a promessa eleitoral,
depois transcrita no programa de Governo. Rezava
assim: "Quanto às Scut, deverão permanecer como vias
sem portagem enquanto se mantiverem as condições que
justificaram, em nome da coesão nacional e
territorial, a sua implementação, quer no que se
refere aos indicadores de desenvolvimento
sócio-económico das regiões em causa, quer no que
diz respeito às alternativas de oferta no sistema
rodoviário."
Que mudou desde a altura em que a promessa foi feita
no Norte Litoral, no Grande Porto e na Costa da
Prata, as regiões afectadas pela medida anunciada
por Mário Lino? Substancialmente, nada. Essas
regiões continuam a divergir da média do rendimento
nacional, sendo que a sua posição relativa até se
terá degradado. Passaram a existir rodovias
alternativas? Não. Mais: por que razão se opta por
fazer pagar os utilizadores das auto-estradas dessas
três regiões, que nem são das mais ricas do país, e
se continua a isentar de pagamento os que circulam
pela Via do Infante, no Algarve, a segunda região do
Continente com maior rendimento per capita? Por não
existirem alternativas? Não, pois bastará a Mário
Lino ir do Porto a Viana ou do Porto a Aveiro pelas
velhas estradas nacionais para perceber que estas
não são alternativa a nada.
O problema é outro e antigo: as Scut são desde o
início um disparate, uma asneira devida às
habilidades inventadas no tempo das vacas gordas mas
impossíveis de pagar em época de vacas magras. Até
porque, como provam os estudos habitualmente
invocados para sustentar a importância destes
investimentos - como os dos professores Marvão
Pereira e Jorge Andraz -, se os investimentos em
infra-estruturas rodoviárias têm algum retorno em
termos de desenvolvimento económico (apesar de se
dever comparar esse retorno com o que
proporcionariam investimentos na ferrovia...), a
verdade é que eles beneficiam mais as regiões mais
ricas, como a de Lisboa, do que aquelas que
realmente servem.
Mais: desde o início que a opção por construir estas
vias com "portagens virtuais" pagas por todos os
cidadãos, pobres ou ricos, com carro ou sem carro,
pecou por incoerência. Senão repare-se que as
auto-estradas que atravessam o Alentejo, uma das
regiões mais deprimidas do país, têm todas
portagens, ao contrário das que servem distritos
mais dinâmicos como os de Castelo Branco ou da
Guarda. Será por as velhas estradas alentejanas
terem menos curvas? Talvez. Mas então como
justificar que o mesmo não se passe noutras regiões
onde as vias, se bem que menos perfeitas, podem ser
consideradas alternativas e, sobretudo, as
caríssimas Scut são estradas do "lá vem um"?
Não há de facto nada como o choque da realidade e da
falta de dinheiro para obrigar os políticos a
abandonarem promessas eleitorais. Mas ao menos
valha-nos isso: pior seria insistir num disparate
que já custou demasiado ao erário público e consumiu
recursos que teriam sido muito melhor utilizados
noutras frentes. Pelo que, promessa incumprida por
promessa incumprida, seja talvez altura de admitir
que tanto a Ota como o TGV são coisas para esquecer.
É que, tal como todos os almoços, esses devaneios
são tudo menos grátis...