Diário de Notícias - 16 Out 06
O aborto e as
marés ideológicas
João
César das Neves
Cresce a possibilidade de termos um novo referendo
sobre a liberalização do aborto. A discussão no
Parlamento está agendada e os jornais há muito
ateiam o tema. Tudo indica que o poder político nos
vai perguntar se mudámos de opinião desde 1998.
O aspecto mais chocante desta reedição é, sem
dúvida, o momento escolhido. Hoje, ao contrário de
há oito anos, o País vive uma crise grave, com
estagnação económica, alto desemprego, fortes
carências e contestações em múltiplos sectores.
Iniciar nestas condições um debate sobre uma questão
tão controversa e dolorosa parece loucura total.
Não é certamente por sérias razões políticas,
sociais e de interesse nacional que o referendo vai
ser marcado. Se tivesse sido imposto de fora,
diríamos tratar-se de sabotagem inspirada por
potências inimigas. Que o próprio Governo da
República lance o processo é inacreditável.
Uma irresponsabilidade tão flagrante denuncia a
presença do único elemento que pode determinar tal
cegueira, o preconceito ideológico. Isso aliás é
evidente nos argumentos apresentados. Os dois lados
em debate esgrimem as suas razões, mas só um deles
invoca o testemunho do progresso. Segundo os
proponentes, uma das principais razões para mudarmos
a nossa lei é a sua desactualização. Ouve-se com
frequência dizer que esta nossa legislação é
obsoleta, ultrapassada, a "mais atrasada da Europa".
Abortar à vontade parece ser moderno.
É difícil imaginar como é que o tempo entra numa
questão tão básica e perene como esta. O aborto,
como o terrorismo ou o crime, não melhora com o
desenvolvimento, flutua com a moralidade. Mas as
marés ideológicas nunca seguem a lógica.
Há 30 anos, os defensores da economia colectivizada
e planificada também se consideravam progressistas e
avançados. Propor a ditadura do proletariado era
então actual e dinâmico, enquanto a liberdade de
mercado se mostrava antiquada e conservadora. Essa
maré passou, e sabemos agora que a antevisão era não
só um pedantismo intelectual insuportável mas um
criminoso atentado contra a civilização e o bom
senso. Os países que caíram na armadilha foram
arrastados para desastres económicos de que só
dificilmente ainda recuperam, enquanto as gerações
seduzidas por tais ideologias se perderam debaixo
dos escombros da sua tolice.
A maré mudou e agora o mesmo tipo de raciocínio
passou dos inimigos da liberdade económica para os
que atacam a família e a vida (que aliás são, em
geral, os mesmos). Com uma diferença fundamental. De
facto, o sistema colectivista tinha à partida
hipóteses teóricas de funcionar. As dificuldades de
implantação revelaram-se insustentáveis, mas ao
nível da concepção está demonstrada a equivalência
potencial de resultados entre economia dirigida e
descentralização mercantil. Pelo seu lado, a
liberalização do aborto não tem nenhuma hipótese de
futuro. Na dinâmica das civilizações, a dissolução
doméstica, promiscuidade sexual e obsessão venérea
são sempre sinais de decadência, não de
desenvolvimento. Aliás, a Europa vive já uma grave
crise de valores e uma catástrofe demográfica, que
lhe serão fatais na dinâmica global dos blocos.
Precisamente porque a sua cegueira ideológica é
avassaladora.
Um sinal disso vê-se nos jornais que, como sempre,
são escravos das modas intelectuais. Aliás, uma das
poucas vantagens do período de referendo é que os
meios de comunicação social serão obrigados a
abandonar a descarada defesa do aborto, para
fingirem uma imparcialidade forçada. Esse foi um dos
factores que permitiu há oito anos que, silenciada a
"opinião pública oficial", se manifestasse a
verdadeira atitude dos portugueses.
A maré vai mudar. Entretanto a alteração da lei tem
um aliado perigoso: o comodismo burguês. Não faltam
os que dizem coisas como: "Eles não nos largam com
isto, o melhor é deixá-los mudar a lei para ver se
se calam." Além de cobarde e cínico, trata-se de um
erro clamoroso. Porque "eles" não se vão calar, tal
como os revolucionários da geração anterior só
pararam diante da catástrofe económica. Reforçados
com uma evental vitória que a cobardia lhes
concedesse, iriam promover outras mudanças, menos
sangrentas mas mais depravadas.
Portugal em 1998 conseguiu conter a principal maré
ideológica do nosso tempo. Se o aborto tivesse sido
liberalizado, sofreríamos agora a confusão de temas
que países próximos, com leis mais "avançadas",
sofrem. E viveríamos os terríveis estragos humanos
que por lá se vivem.