Correio da Manhã - 15 Out 06
Estado tem de
reduzir despesa
Miguel Alexandre Ganhão
João César das Neves só quer ver
uma coisa no Orçamento do Estado para 2007: uma
descida da despesa total do Estado. O economista diz
que está farto de retórica e que é “tempo de fazer”.
Lamenta a falta de acordo na Segurança Social.
Correio da Manhã – Nas vésperas
da apresentação do Orçamento do Estado para 2007,
qual é a sua perspectiva, realista, em termos de
crescimento económico?
João César das Neves – Todos os sinais que temos
apontam para que o comportamento da economia em 2007
não seja muito diferente de 2006. Não é uma má
previsão. A economia está a crescer pouco, o que,
numa economia como a nossa, quer dizer coisas muito
diferentes. A média é baixa mas existem sectores que
estão a ganhar muito dinheiro. Nós hoje já temos uma
economia grande, já temos uma economia rica. Somos
os únicos que não acreditamos nisso, mas temos uma
economia desenvolvida onde as coisas não vão todas
no mesmo sentido. Existe esta situação estranha de
estarmos numa crise económica há seis anos que não
cai, mas também não sobe. Tivemos uma crise profunda
em 2003, depois tivemos uma recuperação que nunca
mais pega. Por tudo isto, penso que o comportamento
da economia será igual ao de 2006. O Governo tem de
fazer o seu papel e o seu papel é ser optimista.
– Mas estamos a falar de um crescimento de dois
por cento?
– Dois por cento é de mais. Falamos antes de um
valor em torno dos 1,5 por cento, tudo o que estiver
acima disso já é estar a falar na parte de cima do
que é razoavelmente previsível. Tivemos números
claramente positivos no último trimestre, mas o
Governo “embandeirou um bocadinho em arco”. Começou
já a dizer que já tínhamos saído da crise, não há
razão para isso. A economia internacional está a
recuperar, as nossas exportações estão a subir mas,
por exemplo, o investimento está em queda. Os factos
mostram que estamos numa situação que não é clara, é
uma situação absolutamente nova para a economia
portuguesa, não se sabe bem para onde vamos, e tudo
aconselha para não sejamos demasiado eufóricos
embora o Governo esteja a fazer o seu papel.
– Sabemos que vão existir importantes cortes no
investimento, que vai haver um congelamento de
salários na Função Pública, que vão existir novas
taxas na Saúde. Serão estas medidas suficientes para
matar ‘o monstro’?
– Os dados que já conhecemos não os posso
classificar como de ‘cosmética’, mas são pequenos
ajustamentos. Se o Governo quiser cumprir o que
disse [um défice abaixo dos três por cento] e,
sobretudo, quiser colocar as finanças públicas numa
trajectória de sustentabilidade terá de fazer
reformas de fundo. Utiliza-se muito a retórica,
sucedem-se os estudos, por exemplo da Administração
Pública, agora acabou-se é preciso fazer! Eu, quando
olho para o Orçamento, a primeira coisa que vejo é a
despesa total. Não me importa o défice, porque é
muito fácil manipular o défice, é muito fácil mexer
nas receitas que, ainda por cima só confirmam as
despesas. O que é preciso é olhar para a despesa
total, se essa descer já fico contente. No ano
passado subiu. Desceu em percentagem do Produto, o
que significa que subiu mais devagar do que a
previsão de crescimento do Produto, mas subiu. Se
amanhã sair um número sério, ficamos a saber duas
coisas: ou o Governo vai fazer reformas a sério, ou
não vai cumprir o Orçamento. Temos de ter a
consciência de que hoje temos um desequilíbrio
financeiro que é mais grave do que aquele que
tivemos a seguir ao 25 de Abril. Hoje não temos a
pressão política de ter uma moeda, temos o conforto
de uma moeda única, e isso é perigoso. A Madeira é
exemplo disso vive há séculos com o conforto de ter
a mesma moeda que o Continente e toda a gente sabe
qual é a situação financeira dramática em que se
encontra a Madeira. Portugal não se pode transformar
na Madeira da Europa!
– O que é preciso para resolver o problema da
Função Pública, para além de congelar os salários e
dar incentivos para que os trabalhadores vão para
casa?
– Estamos a falar de um problema que tem décadas, em
que as principais vítimas e os principais culpados
foram os funcionários públicos. Os sindicatos nunca
perceberam que, ao deixar entrar tanta gente, se
estavam a prejudicar a si próprios. Quando eram
poucos e bons eram respeitados. O que existiu foi
uma ilusão de que a dimensão dava importância à
Função Pública, quando era precisamente o contrário.
Mais cedo ou mais tarde íamos bater nas paredes. Os
ministros passam, as políticas variam mas os
sindicatos são os mesmos. O primeiro problema é de
dimensão: temos funcionários públicos a mais. No
último relatório existe uma expressão genial:
“Aumento de efectivos sem justificação visível.” É
uma expressão simpática para dizer que isto foi um
regabofe! Agora eles estão lá dentro e não podem ser
despedidos só mudando a Constituição, e ninguém vai
fazer isso. Só resta mandá-los para casa com o
salário. A única maneira de poupar dinheiro é fechar
serviços. E existe uma quantidade de serviços para
fechar. É a maneira certa, mas difícil, de fazer.
Existe uma outra maneira mais simples, e mais
injusta: congelar os salários. Neste caso,
atingem-se os bons e os maus, os indispensáveis e os
disponíveis por igual. É uma solução mal feita.
– Defende a emissão de dívida pública para pagar
as indemnizações dos funcionários?
– É preciso fazer contas. Se eles ficam temos de
lhes pagar o salário, se são despedidos temos de
pagar os juros da dívida. Temos de comparar quais
das duas despesas é maior. Provavelmente não será má
ideia aumentar a dívida. Mas também é preciso saber
qual é a dimensão de pessoas que está disposta a ir
para casa e provavelmente não é muita. O segundo
problema complicado não é de dimensão é de montante.
E tem a ver com as regalias a que praticamente todos
têm acesso, não tanto ao nível salarial mas ao nível
da progressão automática nas carreiras. Não é
possível alguma organização funcionar assim. Existe
um caso particularmente escandaloso na Educação, em
que os professores mais graduados são os que ganham
mais e os que trabalham menos. Temos pessoas
altamente qualificadas que não têm nenhuma relação
com os alunos.
– Perdeu-se a oportunidade de conseguir um acordo
de regime na Segurança Social, introduzindo um
regime de capitalização com participação do sector
privado?
– A Segurança Social tem um problema que é
excelente: as pessoas morrem mais tarde. E isso são
boas notícias. Com o aumento da esperança de vida é
razoável pensar que as pessoas estão dispostas a
trabalhar mais. Isto não é um problema económico é
um problema político. O problema está definido: ou
as pessoas trabalham mais, ou as pessoas pagam mais,
ou as pessoas recebem menos. Mas também é razoável
que se dê às pessoas a possibilidade de escolher.
Este é o caminho a seguir e, em parte, é o caminho
que o Governo está a tomar. Nós não temos um
‘buraco’ na Segurança Social. Ela está a dar
dinheiro, quem tem são os nossos parceiros europeus.
Como o nosso sistema é recente, só teremos problemas
daqui a dez anos e por isso podemos tomar medidas
agora que minorem esse problema. Por isso mesmo
deveria ter havido um acordo entre os partidos, e o
Presidente da República falou disso, para que
existisse uma solução de longo prazo. A questão é
política, nem sequer é ideológica, o Governo quis
aparecer sozinho na fotografia e a Oposição não
renunciou à ocasião de mandar umas farpas. Penso que
se poderia ter introduzido a participação do sector
privado. Em termos financeiros, a questão da
Segurança Social é complicada porque diz respeito a
um período muito longo. Por isso, quanto mais
válvulas de flexibilidade introduzirmos melhor.
– Mas para que as pessoas trabalhem mais, é
preciso que as empresas aceitem empregar
trabalhadores mais idosos?
– Hoje existem menos pessoas a trabalhar do que
pessoas na reformas, mas a verdade é que aquelas que
trabalham produzem muito mais do que o que acontecia
há 20 ou 30 anos. Temos mais para distribuir. Por
isso, o problema não é económico. É verdade que a
mudança de mentalidade tem de passar também pelas
empresas. A primeira coisa que vai acontecer é que
os próprios chefes das empresas vão ficar mais
velhos. É um erro económico pensar que as pessoas
aos 55 anos já não servem e têm de ser dispensadas.
É um erro. E as empresas que perceberem que é um
erro e aproveitarem o contributo que essas pessoas
têm para dar vão ganhar, e aquelas que insistirem na
tolice de dispensar trabalhadores com experiência
vão ter custos enormes.
"O PROBLEMA DA SAÚDE NÃO TEM SOLUÇÃO"
CM – Na Saúde vamos ter mais taxas – as taxas de
utilização. Teremos mais equilíbrio no Orçamento
deste sector?
J.C.N. – Já disse várias vezes que considero que a
Saúde é o único problema que não tem solução. Ao
contrário da Educação, onde é possível fazer cortes,
na Saúde se conseguirmos conter o problema já não é
mau. Já hoje começa a existir na sociedade a
percepção de que na Saúde existe um conjunto de
gente a ganhar muito e a aproveitar-se, sem ganhos
para o País. É de todo o interesse da classe médica
e da classe da Saúde em geral que haja um controlo.
–Mas ninguém é operado ou internado porque quer.
É justo que eu pague uma taxa por algo que sou
obrigado a fazer para salvar a minha vida?
– Todas as pessoas têm uma doença desde que nascem,
que é a necessidade de comer todos os dias. E têm de
pagar pela comida que comem. O que é um facto é que
as pessoas que recorrem ao SNS estão a gastar
recursos. É certo que é por questões de saúde, mas
que a sociedade pague esses recursos e a pessoa que
beneficia deles não pague nada não é justo!
"NÃO SE PODE ADMITIR CHANTAGEM MUNICIPAL"
CM – Concorda que as autarquias são o ‘cancro’
das Finanças Públicas?
J.C.N. – Não se pode dizer isso. O problema é que os
municípios são muitos e muito difíceis de controlar.
No endividamento à Banca, e como em Portugal não há
uma responsabilização directa de cada autarquia
pelas suas contas, existe uma possibilidade de
chantagem sobre o Orçamento do Estado que não é
admissível.
– As autarquias dizem que o Estado transferiu
competências sem ter transferido contrapartidas
financeiras?
– O problema é as câmaras poderem ir à Banca
endividar-se à vontade. Quem sofre com isto são os
munícipes, que ficam, por exemplo, sem esgotos e sem
estradas de qualidade.
PERFIL
João César das Neves é licenciado e doutorado em
Economia pela Universidade Católica. Foi assessor do
primeiro-ministro Cavaco Silva para as questões
económicas e é professor da Católica desde 1980.
Além da sua actividade académica, César das Neves
tem uma vasta obra literária publicada, sempre
associada a temas de economia, com alguns livros
escritos como se fossem contos policiais.