O Mestre das escaramuças RETRATO DA SEMANA ANTÓNIO BARRETO
O primeiro-ministro tem jeito. Talvez mesmo talento
e intuição. Decidiu, desde o primeiro dia,
surpreender e tomar a iniciativa. Nunca ir atrás do
acontecimento, mas provocá-lo. Para tal, escolheu um
método: designar o adversário, denunciar um
privilégio, tomar uma medida e atacar com a lei.
Tudo isto tendo ao seu serviço uma inédita
concentração de poderes e uma imbatível organização
de informação, mas reservando sempre para ele o
início da operação e o anúncio da surpresa. Juízes,
farmacêuticos, professores, deputados, médicos,
advogados, reformados, idosos, autarcas e
funcionários públicos sucederam-se na honrosa lista
das corporações que importava apear dos seus
poleiros. Apenas foram poupados os grandes grupos
económicos, com os quais o governo entendeu
estabelecer bases para uma aliança sólida. Escolas
de reduzida dimensão, "maternidades" e equiparadas,
centros de urgência médica, tribunais e câmaras
municipais foram apenas algumas das instituições
visadas pela inesgotável energia reformadora do
governo. Em muitos casos, o êxito foi imediato. A
aspirina no supermercado foi louvada por quase toda
a gente. Obrigar os professores a ficar mais tempo
na escola foi visto como um gesto de sabedoria e
autoridade. Fazer ajoelhar os autarcas de todo o
país foi bem visto e mais bem comentado nos salões e
cafés. E muitos foram os que acharam "bem feito"
ter-se tirado um mês de férias aos magistrados que,
supostamente, gozariam dois ou três. O problema é
que chegou a vez dos grandes números: mães e pais,
idosos, professores, doentes, pensionistas e
funcionários públicos, somados, fazem muita gente.
José Sócrates vê-se agora obrigado, não mais a
seleccionar alvos de estimação, mas pura e
simplesmente a olhar de frente para toda a
população.
Até agora, temos estado perante uma estratégia
consolidada e deliberada. A autoridade do
primeiro-ministro sobre os seus ministros é
indiscutível, como talvez não se tenha visto em
Portugal há várias décadas. A organização da
propaganda e das relações públicas, servida por
centenas de profissionais, tem-se revelado
impecável. A nomeação de inimigos, privilegiados e
culpados, tem seguido um método eficaz. É o género
de pessoa que, de manhã, quando se levanta, deve
perguntar-se: "Com quem é que me vou meter hoje?". O
seu método da acção tem destroçado os adversários
políticos: inunda o país de medidas, semeia
escaramuças em todas as esquinas e reserva sempre a
iniciativa para si. Concede a despenalização do
aborto ao Partido Socialista, mas não lhe dará
absolutamente mais nada. Vai oferecer o que pode à
Igreja Católica, na educação, na segurança social e
no património, para compensar a interrupção
voluntária da gravidez. A alguns socialistas mais
fiéis vai dar uma regionalização, que prepara
sub-repticiamente, com o que espera compensar os
mortos e feridos das finanças locais. Procura a
empatia e a colaboração do Presidente Cavaco Silva,
mas sabe o perigo que corre: este, quando lhe disser
"não", terá tanto mais autoridade quanto lhe terá
repetidamente dito "sim".
Reconheça-se que, entre tantas medidas e no meio
desta pletora de intenções, há muito que se
aproveite. O controlo da despesa pública, a poupança
no gasto, a austeridade nos serviços públicos, o
remendo da Segurança Social e a ordem nas escolas,
por exemplo, implicam dispositivos e determinações
cuja bondade, geralmente imposta pela necessidade, é
indiscutível. Mas, com o tempo, tem-se também
percebido que a técnica do primeiro-ministro se tem
limitado ao superficial. Nunca ir até ao fim parece
ser a sua regra. Ferir um pouco tudo e todos, mas
nunca ir ao fundo das coisas, pois é aí que se fazem
os inimigos irrecuperáveis. A actual reforma da
Segurança Social, feita com vinte anos de atraso, é
um exemplo interessante: foi obra das mesmas pessoas
que, há meia dúzia de anos, fizeram uma outra, para
Guterres e Sócrates, considerada suficiente para
"cem anos"! É um bom exemplo do que é a
superficialidade.
Houve uma altura, aqui há uns meses, em que se
chegou a pensar que o primeiro-ministro estava
disposto a ultrapassar o efémero e o remendo. Mas
agora as ilusões acabaram. A diminuição
significativa da função pública e o congelamento dos
vencimentos, por vários anos, não serão as suas
políticas. A redução drástica das prestações sociais
não será obra sua. A alteração radical da política
de pescas e de fomento agrícola e hidráulico não
terá a sua autoria. A nova política de fomento
florestal não será elaborada nem posta em prática
por este governo. A entrega definitiva das escolas
às comunidades educativas e às autarquias locais não
será feita por ele. A modificação da lei eleitoral e
a consagração do princípio da eleição directa e
nominal não serão realizações suas. Como sua não
será a criação de órgãos externos de controlo das
universidades. Um código severo de
incompatibilidades na acumulação de funções públicas
e privadas na educação e na saúde não será aprovado
por si. E a proibição de passagem promíscua de
cargos políticos para empresas privadas e públicas
ou vice-versa não será decretada por ele. Como não
será ele que acabará com as nomeações "por confiança
política". Nem imporá prazos imperativos aos
magistrados judiciais e aos procuradores do
ministério público. Não será capaz de acabar com a
perpetuidade do emprego público. Nem saberá tornar
muito mais flexível o mercado de trabalho, como não
desejará dar um pouco mais de garantias aos
trabalhadores precários.
Quando monologa, José Sócrates é um homem doce e de
aparência convincente. Se contrariado, revela uma
rispidez ácida e uma pulsão vingativa
surpreendentes. No Parlamento, atinge facilmente um
grau de cólera pouco adequada a quem tem ainda de
correr um longo caminho, a quem sabe que o mais
difícil está para vir. O Mestre das Escaramuças
especializou-se em raides súbitos. Não parece
preparado para as grandes batalhas. Mas esperemos.
Dentro de pouco mais de um ano, com novas eleições à
vista, veremos se até o efémero e a superficialidade
são ou não sacrificados à demagogia. Como já
aconteceu antes. Tantas vezes!