Diário de Notícias - 08 Out 06

"Vais morrer", ameaçou o colega de escola do 'Daniel'

Maria José Margarido

 

Há três anos que Sara é apelidada de vaca e gorda pelos colegas de turma, sempre que responde às perguntas dos professores nas aulas. Por causa disso, as notas baixaram, e a auto-estima de adolescente também, para níveis perigosamente fracos. Desde que concluiu o 1.º ciclo que Francisco sobrevive num mundo onde quem não joga à bola nem reage à altura a todas as provocações só pode ser maricas. Chegou a ser pendurado com fita adesiva resistente a um poste da escola, pernas, braços e tronco atados a considerável distância do solo. Daniel só tem dez anos e, há poucas horas, um punho cerrado em frente da cara, à qual já tinham sido retirados com violência os óculos, deixou-o a chorar. "Hoje vais morrer", garantiu-lhe o colega.

O Ministério da Educação e as escolas podem não reconhecer o conflito como seu, garantir que representa apenas 5% dos problemas do sistema de ensino - não podem é dizê-lo a estes estudantes. São apenas três faces visíveis - mas anónimas, porque o medo e o estigma chegam muito além dos pátios e das salas de aula - do bullying nas escolas portuguesas. Deste fenómeno, definido como violência psicológica ou física entre pares, entre iguais, há especialistas que garantem poder ser causa de morte, de suicídio - aludindo a alguns casos verificados em Portugal mas nunca catalogados como tal. Noutros países, há relatos fundamentados deste extremo a que pode chegar quem é vítima sistemática de agressão, continuada e persistente - durante dias, meses, anos -, por parte dos colegas.

Sara é alta para os seus 14 anos, mas é no excesso de peso que sempre foi colocada a tónica dos insultos. A mãe, técnica administrativa, acredita que o objectivo é "desestabilizar, tentar isolar as raparigas que são boas alunas. Ela é aplicada nos estudos, participa nas aulas. Eles não suportam isso, acham que se arma em esperta". A adolescente identifica os agressores desta tortura, que dura há três anos numa escola da periferia de Lisboa, como "mais velhos, repetentes" - e há efectivamente tendência para o fenómeno ter maior expressão em turmas com insucesso escolar generalizado.

"Normalmente são três, mas quando desestabilizam mais chegam a ser seis, todos com idades a rondar os 16 anos", contabiliza Sara, que garante que os professores os admoestam, mas de nada vale. E quando as piadas e a agitação pegam, "a turma vai toda atrás".

Ao princípio, no 7.º ano, quando a humilhação sistemática começou, ficava "transtornada", não percebia porque é que lhe acontecia aquilo, logo a ela. Quando muito, não corria tanto como os outros na aula de Educação Física. Começou a fraquejar nos estudos, o silêncio foi a primeira reacção: "Só passados três ou quatro dias é que me contava o que lhe tinham dito ou feito", lembra a mãe. A relação de poder entre os agressores e a vítima é sempre assimétrica, há uma desigualdade total, concordam os académicos que se debruçaram sobre o bullying. A debilidade inicial é explorada ao máximo.

Apesar de toda a pressão, Sara nunca se calou. Continuou a participar nas aulas, mostrava-se forte embora estivesse desfeita por dentro, "não mereciam que tivesse más notas por causa deles". Pediu duas vezes para mudar de turma, nunca conseguiu. "Construí aqui um muro ", e quando assim fala desenha uma barreira imaginária à volta com as unhas pintadas, mesmo que nesse momento esteja apenas no sofá da sua sala. "Vieram cinco ou seis de rompante quando estava a atravessar o pátio e colaram-me a um poste com aquela fita adesiva mais forte, castanha". Francisco estava nessa altura no 8.º ano e o seu aspecto franzino já se tinha prestado a várias humilhações, às vezes evitadas com doses de solidão e reclusão no centro de recursos da escola - a mesma de Sara -, à volta dos computadores. Nesse dia não conseguiu escapar: ficou dez minutos naquela figura, ao pé do campo de futebol. Passaram vários alunos, ninguém o tirou de lá. Francisco desembaraçou-se sozinho, recorrendo à sua magreza e a um pequeno x-ato.

O discurso deste jovem de 13 anos é todo dirigido para a justificação daquilo que os outros consideram a sua fraqueza. "Fui criado entre mulheres, da 1.ª à 4.ª classe estive numa turma só com raparigas. É natural que tenha mais amigas." Não gostar de jogar futebol foi a gota de água para ser apelidado de maricas. Os dias só começaram a ser menos extenuantes quando o pai foi à escola com um amigo polícia e obrigou os agressores a prometer que, a partir daquele momento, iam proteger o seu filho em vez de o agredir. "Nunca mais me roubaram o troco do almoço no refeitório, já quase não me ofendem e até perguntam se está tudo bem." Esta protecção, à boa maneira da mafia italiana, é facultada aos alunos de muitas instituições de ensino em troca de dinheiro ou bens. Recusar a chantagem é sinónimo de agressão e humilhação. E mesmo que os professores estejam atentos, "eles deslocalizam a empresa", como explica a presidente do conselho executivo de uma escola da Margem Sul. Sempre que havia uma tentativa de intervenção, a extorsão passava do refeitório para o corredor, e daí para onde calhasse.

Daniel chegou à nova escola há poucos dias, dez anos de gente assustados com a imagem de um punho cerrado, desfocado à frente dos olhos sem óculos. "Já tenho alcunha, tenho, sou o orelhas", e foi assim que o chamaram quando lhe garantiram que ia morrer. A agressão não foi consumada, Daniel começou a chorar e a chamar a atenção, está agora no gabinete de gestão de conflitos. Sempre que olhava para o seu agressor, nas aulas, ele dizia-lhe "ainda vais levar". Agora, Daniel planeia mostrar-lhe a cicatriz da operação ao apêndice. "A ver se não me bate."