Público - 05 Out 06

O tempo da barbárie

Carla Machado

 

Era uma vez uma cidade, longe, muito longe, na qual viviam gentes tranquilas e curiosas, dedicadas ao conhecimento e ao estudo. Nesta cidade, o principal bem era o saber e a sua partilha. Os mais velhos ensinavam os mais jovens e estes, ávidos de aprender, desvendavam novos trilhos, investigavam, descobriam e, por vezes, surpreendiam os seus mestres. Nesta cidade, longe, muito longe, a discussão, a dúvida e a razão eram as verdadeiras deusas e todos os dogmas eram questionados.
A cidade não era, contudo, um sítio perfeito. Nem todos os mais velhos gostavam mesmo de repartir o seu saber e alguns havia já muito tempo que se tinham desinteressado de experimentar novos caminhos. Por outro lado, nem todos os mais jovens tinham realmente sede de conhecimento. Alguns procuravam apenas as honrarias e a reputação concedidas por ter vivido na cidade. Alguns destes, na verdade, eram pouco ágeis no dedilhar das ideias e ressentiam-se da forma como elas brilhavam nas bocas de outros colegas e mestres. O despeito, o medo e a frustração instalavam-se e, com elas, a vontade de poder.
Um dia, tribos bárbaras invadiram a cidade. Vultos vestidos de negro, com longas capas e vestes obscuras, surgiram de um dia para o outro e anunciaram a sua chegada com cânticos ameaçadores e obscenos. Intimidaram os recém-chegados à cidade, conspurcaram-lhes o rosto e mancharam-lhes as roupas. Falavam apenas em altos gritos e os recém-chegados eram proibidos de os olhar de frente. De porte curvado, de joelhos, espojados no chão, eram forçados a prestar-lhes vassalagem. As mulheres, os mais tímidos ou os mais frágeis eram particularmente humilhados e constrangidos a tomar parte em jogos de submissão, simulando actos sexuais ou exibindo cartazes degradantes. Todos os dias inventando novos rituais para exibir o seu poder, os membros da tribo simulavam ser donos do saber e forçavam os noviços a chamar-lhes "senhor doutor". Encabeçando tais grupos predatórios estavam precisamente os mais incapazes dos jovens membros da cidade, aqueles que sucessivamente fracassavam no intuito de lhes ser atribuído o tal ambicionado estatuto.
Temerosos da reacção dos bárbaros e querendo proteger a reputação da cidade, preocupados com os seus projectos pessoais e por vezes constrangidos pelo peso dos seus próprios desígnios de poder, os mestres encolheram-se perante a invasão destas hostes agrestes e nada fizeram para proteger aqueles que consigo vinham aprender. Fecharam-se nos seus laboratórios e bibliotecas e esperaram que a barbárie, naturalmente, esmorecesse. Tornaram-se cúmplices do espezinhar do espírito de quem tanto tinha lutado para chegar à cidade. E assim a barbárie, periodicamente, renasceu...
Esta é, obviamente, uma crónica de ficção. Qualquer semelhança dos acontecimentos descritos com o que se passa nas universidades em tempos de praxe não é, contudo, mera coincidência. Professora universitária