Acaba de ser publicado o relatório da "Comissão
Técnica de Revisão de Vínculos, Carreiras e
Remunerações na Administração Pública". Este facto,
só por si, merece destaque, não pela raridade das
comissões, que têm sido miríade, mas pelo quadro que
traça do nosso funcionalismo. Os diagnósticos e
propostas tendem a ser velhos e conhecidos; os
números, esses são novos. A maior surpresa, porém,
está na relativa apatia com que o documento foi
recebido.
O texto confirma as piores suspeitas. O emprego na
administração pública atingiu em 2004 o número
astronómico de 755 mil pessoas, mais 117 mil que dez
anos antes (p. 17), dez anos supostamente de rigor,
reforma e contenção. Esse valor representa 14,7% do
emprego nacional. A percentagem parece descer face a
2000, mas, retirando os 400 mil imigrantes que
entretanto entraram, sobe bem acima dos 15%. As
despesas com este pessoal representam 14,5% do PIB
(p. 24) e 60,7% dos impostos (p. 31).
Níveis destes não têm paralelo na Europa, a não ser
nos países nórdicos com sistemas muito diferentes. A
Espanha, apesar das regiões, teve em 2000 apenas 12%
do emprego no Estado (p. 26) e despesas de pessoal
em 9,9% do PIB (p. 27) e 43% dos impostos (p. 31). A
média comunitária é também inferior. Mais grave é
estes indicadores terem descido geralmente nos
nossos parceiros, continuando alegremente a subir
entre nós.
O acréscimo de 2,9% do PIB em gastos com pessoal
face à média europeia (p. 27) significa anualmente
uma perda em Portugal de quatro mil milhões de euros.
Isso equivale a cinco vezes os estádios do Euro
2004, o dobro do aeroporto da Ota e quase o custo da
linha TGV Lisboa-Porto. Este colossal "aumento do
peso do rácio da despesa no PIB, no período de 1990
a 2002, é explicado em 31,4% pelo aumento da despesa
média [por trabalhador] e em 68,6% pelo aumento do
número de efectivos" (p. 25). Os funcionários ganham
mais mas, acima de tudo, são cada vez mais.
O retrato podia continuar. O pior de tudo é o que,
na sua linguagem neutra, o Relatório apresenta como
"acréscimo de efectivos sem justificação visível"
(p. 31).
Estes enormes aumentos não tiveram, afinal,
resultados.
O Estado, que já era monstruoso e tentacular há 20
anos, hoje esmaga a economia, sem trazer nada de
mais. As melhorias de serviço, novos benefícios,
ganhos de eficácia são ínfimos face à dimensão dos
acréscimos. Por exemplo, nas "remunerações certas e
permanentes", "o peso dos ministérios da "Educação,
Ensino Superior e Ciência", de 2001 para 2005, passa
de 46,3% para 50,9%" (p. 23), anos em que a
população escolar caiu acentuadamente.
Assim nem vale a pena falar nos terríveis problemas
de regimes, regalias, rigidez dos contratos. E tudo
isto vem só das questões de pessoal. Os recursos
desperdiçados pela acção desse pessoal, em subsídios
injustificados, projectos sem fundamento,
burocracias paralisantes, ficam omissos.
A administração pública é muito vasta e
diversificada. Existem excelentes exemplos, pessoal
dedicado, serviços eficientes. Mas este quadro
global, sempre injusto para os casos pontuais,
aponta para uma conclusão indesmentível: aqueles a
quem o País entregou a gestão dos recursos nacionais
usaram-nos, em geral, em seu proveito. Como não são
tolos e têm arte, ficaram com a melhor parte.
Um facto significativo vem das enormes dificuldades
dos trabalhos da Comissão. Os valores publicados são
deficientes, com séries truncadas, números
extrapolados, comparações parcelares, usando fontes
exteriores, não internas. Se a máquina do Estado é
bem definida e controlada, não devia ser tão difícil
descrevê-la. Por que razão é tão custoso saber a
quantos o Estado paga? Complicado é medir a
indústria, o PIB, o investimento nacionais. A
nebulosidade em problema estatístico tão linear
aponta para a cumplicidade dos serviços nos esforços
para disfarçar o descalabro.
O relatório agora publicado revela um escândalo
nacional de uma dimensão e profundidade sem
comparação. Os responsáveis pela catástrofe são
muitos e espalhados por décadas, mas a sua acção
conjunta gerou um desfalque do dinheiro dos pobres
sem paralelo na nossa História. Supreendente é a
apatia e indiferença com que isto foi recebido.
Reclamar punições é desadequado, mas ao menos que se
evitem repetições. Os actuais agentes do sector,
herdeiros deste monstruoso desastre, vão definir o
futuro. Pedir-lhes vergonha talvez seja difícil,
mas, ao menos, que mostrem algum comedimento e
embaraço.