Público - 03 Out 05

 

Pobres que precisam de crédito e dispensam subsídios

Graça Franco

 

Naquele quase nada do chamado Plano Nacional de Emprego, recém apresentado com a pompa e circunstância habitual, há uma pequeníssima medida que faz a diferença: o declarado apoio ao micro-crédito. Trata-se de reconhecer o direito ao emprego dos mais pobres dos pobres. Esses, cuja inserção social não é muitas vezes possível através de esquemas clássicos, tantas vezes geradores de subsídio-dependência. Gente capaz de criar o seu próprio ganha-pão desde que tratados em pé de igualdade com os restantes candidatos a empresários em nome individual. Basta dar-lhes crédito. A ideia mais barata e genial para romper com o ciclo de pobreza surge, por esta vez, e em boa hora, com a dignidade que merece. Como medida geradora de emprego.
Não se falou dela. Para quê descer ao pormenor de falar de um reforço de uns poucos milhares de euros (porque no micro-crédito os empréstimos são sempre inferiores a 5 mil euros!) destinados a permitir a inserção de algumas dezenas de desempregados, num momento em que o flagelo afecta quase meio milhão.
No papel, há medidas muito mais sonantes. O próprio plano anuncia-se pronto a gastar, "no mínimo", 1500 milhões. Destes, 461 milhões de euros para a inserção social de perto de 153 mil beneficiários do rendimento social mínimo garantido. Uma boa ideia que a prática mostrou ser intrinsecamente perversa. Basta atentar no uso abusivo das crianças (com alto valor na captação de subsídios) por famílias exclusivamente parasitárias. Temo, aliás, que as novas verbas venham a traduzir-se apenas em mais dinheiro mal gasto. Estou à vontade para reconhecer o fracasso do RMG porque mil vezes aqui defendi a sua bondade.
Pelo contrário, tenho quase a certeza que aqueles poucos milhares (ou serão milhões?) dedicados ao apoio ao micro-crédito vão de facto criar emprego e mudar a vida de algumas dezenas. Mudar para sempre. Lembro-me disso ao ler a reportagem de Gonçalo Cadilhe na revista Única desta semana. Fala-nos da história de um salvadorenho, de nome Carlos Alas. Um padeiro, de que há dois anos o repórter de viagens se tornou amigo. Vivia com quatro filhos num barraco de terra batida, sem parte do tecto, sem retrete, nem água, nem luz.
Este Verão, o jornalista reencontrou Carlos e viu como já tinha melhorado a barraca. Agora havia retrete, água e frigorífico. Continuava a trabalhar de sol a sol para pagar um empréstimo para os melhoramentos e os 60 dólares de aluguer da máquina de amassar o pão. A máquina podia comprar-se por 2500 euros mas o seu aluguer levava, mensalmente, um terço do salário do padeiro. O jornalista não resistiu, mobilizou amigos e comprou-lhe a amassadora.
Cadilhe cedeu ao impulso da "oferta" e ainda bem porque tirou da pobreza um homem trabalhador e exemplar na coragem e no optimismo da sua luta contra a adversidade. A história de Carlos, pagando pontualmente os seus encargos, é muito semelhante às histórias de sucesso do micro-crédito.
A ideia de criar um banco para os pobres teve na sua génese numa experiência muito parecida à de Gonçalo Cadilhe. A diferença está em que Gonçalo é jornalista e não economista, como Muhammad Yunus, quando este decidiu criar o Grameen Bank (Banco de Aldeia em bangladeshi).
Ele tinha 43 anos. Era economista e professor universitário quando, no início dos anos 80 decidiu esquecer por momentos a sabedoria dos livros e as receitas do doutoramento obtidos nos Estados Unidos para ir perceber, na prática, as razões da pobreza do seu país.
Ele próprio sendo o terceiro de treze filhos nunca fora rico e sempre estudara com bolsas mas, também, nunca tinha sido tão miserável como a maioria dos seus compatriotas. A aldeia de Jobra, perto do campus universitários, foi o cenário escolhido para o trabalho de campo sobre as causas da pobreza.
Um dia, no decorrer desse trabalho entrevistou uma jovem de 21 anos e três filhos que fabricava tamboretes de bambu à porta de uma barraca miserável. Soube que trabalhava todo o dia para conseguir "dois cêntimos" de lucro. Era isso que lhe sobrava depois de pagar os 22 cêntimos (5 taka na moeda bangladeshi) devidos pela matéria-prima emprestada pelos intermediários. No final do dia eles vinham buscar a mercadoria manufacturada e pagavam por ela 5 taka e 50 paisa. Sufia Begum guardava os 50 paisa e devolvia os 5 taka devidos pelo pagamento do bambu utilizado. Quando lhe perguntou porque não pedia antes emprestado o dinheiro para a compra da matéria prima a mulher revelou-lhe que os prestamistas exigiam, na melhor das hipóteses 10 por cento de juro à semana ( mas esse valor podia ir até 10 por cento ao dia). Era demais!
O economista resistiu a tirar do seu bolso aqueles 22 cêntimos que podiam mudar a vida de Sufia. Mais de 20 anos depois, mil milhões de pessoas no mundo continuam a viver com menos de um dólar por dia. Yunus explica que resistiu à dádiva porque "ela não estava a pedir esmola" e isso não resolveria mais do que aquele problema. Em alternativa, decidiu combater as causas que levavam à pobreza daquela mulher. Criou um banco para emprestar a quem ninguém empresta, retirando esse negócio das mãos dos usurários. O Banco cresceu e mantém-se rentável, como se exige a qualquer boa empresa, com uma taxa de mal parado mais baixa do que no negócio da banca habitual. Yunus pode orgulhar-se de ter conseguido arrancar da pobreza vários milhões de pessoas em todo o mundo.
Entrevistei há poucos anos este banqueiro original que agora terá 65 anos. Estava em Lisboa para apoiar um grupo da sociedade civil que decidira aplicar a sua ideia a Portugal em parceria com o BCP. Foi uma entrevista fascinante. Eu estava obcecada com a ideia de que o sucesso da experiência no terceiro mundo não era aplicável a Portugal. Ele acabou a dar-me uma lição que não esqueço.
Explicou-me que regressava dos Estados Unidos onde verificara o sucesso do programa de micro-crédito entre os sem-abrigo de Chicago e Nova Iorque. Desfiava exemplos. A mulher que recebera crédito para a compra de um fogão e dos primeiros ingredientes para que pudesse finalmente produzir "o melhor bolo de chocolate do mundo!"; o financiamento da compra de um carrinho para a venda na rua de chupas de maçã caramelizada. A cada impossibilidade de adequação da sua ideia ao nosso tipo de pobreza ele respondia com um argumento validado pela experiência.
No final, disse-me qualquer coisa como isto: Sabe porque falham muitas medidas de combate à pobreza? Porque se olham os pobres como gente diminuída, pouco esperta, forçosamente preguiçosa, a precisar de seguir os conselhos dos que se consideram mais sábios só porque são mais ricos. Isso é totalmente falso. Os pobres sabem melhor do que ninguém do que precisam exactamente para sair da pobreza. Podem até ter muito mais vocação para o negócio e inteligência do que você. Quase sempre tiveram apenas menos sorte e menos instrução, mas não são menos inteligentes. Sabem, aliás, muito melhor rentabilizar os seus talentos e lutar pela sobrevivência. Tal como um rico que queira tornar-se empresário precisam de crédito mas dispensam subsídios e esmolas.
Evitei, por decoro, explicar-lhe que por cá são muitos os ricos pendurados no facto de serem "geradores de emprego" a não dispensarem subsídios e a não pagarem atempadamente as suas dívidas. Pelo contrário, o Banco dos Pobres exige a todos os seus clientes o pagamento dos respectivos empréstimos, até ao último cêntimo. Nenhuma ajuda é a fundo perdido. Jornalista

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