Pobres que precisam de
crédito e dispensam subsídios
Graça Franco
Naquele quase nada do chamado Plano Nacional
de Emprego, recém apresentado com a pompa e
circunstância habitual, há uma pequeníssima
medida que faz a diferença: o declarado
apoio ao micro-crédito. Trata-se de
reconhecer o direito ao emprego dos mais
pobres dos pobres. Esses, cuja inserção
social não é muitas vezes possível através
de esquemas clássicos, tantas vezes
geradores de subsídio-dependência. Gente
capaz de criar o seu próprio ganha-pão desde
que tratados em pé de igualdade com os
restantes candidatos a empresários em nome
individual. Basta dar-lhes crédito. A ideia
mais barata e genial para romper com o ciclo
de pobreza surge, por esta vez, e em boa
hora, com a dignidade que merece. Como
medida geradora de emprego.
Não se falou dela. Para quê descer ao
pormenor de falar de um reforço de uns
poucos milhares de euros (porque no
micro-crédito os empréstimos são sempre
inferiores a 5 mil euros!) destinados a
permitir a inserção de algumas dezenas de
desempregados, num momento em que o flagelo
afecta quase meio milhão.
No papel, há medidas muito mais sonantes. O
próprio plano anuncia-se pronto a gastar,
"no mínimo", 1500 milhões. Destes, 461
milhões de euros para a inserção social de
perto de 153 mil beneficiários do rendimento
social mínimo garantido. Uma boa ideia que a
prática mostrou ser intrinsecamente
perversa. Basta atentar no uso abusivo das
crianças (com alto valor na captação de
subsídios) por famílias exclusivamente
parasitárias. Temo, aliás, que as novas
verbas venham a traduzir-se apenas em mais
dinheiro mal gasto. Estou à vontade para
reconhecer o fracasso do RMG porque mil
vezes aqui defendi a sua bondade.
Pelo contrário, tenho quase a certeza que
aqueles poucos milhares (ou serão milhões?)
dedicados ao apoio ao micro-crédito vão de
facto criar emprego e mudar a vida de
algumas dezenas. Mudar para sempre.
Lembro-me disso ao ler a reportagem de
Gonçalo Cadilhe na revista Única desta
semana. Fala-nos da história de um
salvadorenho, de nome Carlos Alas. Um
padeiro, de que há dois anos o repórter de
viagens se tornou amigo. Vivia com quatro
filhos num barraco de terra batida, sem
parte do tecto, sem retrete, nem água, nem
luz.
Este Verão, o jornalista reencontrou Carlos
e viu como já tinha melhorado a barraca.
Agora havia retrete, água e frigorífico.
Continuava a trabalhar de sol a sol para
pagar um empréstimo para os melhoramentos e
os 60 dólares de aluguer da máquina de
amassar o pão. A máquina podia comprar-se
por 2500 euros mas o seu aluguer levava,
mensalmente, um terço do salário do padeiro.
O jornalista não resistiu, mobilizou amigos
e comprou-lhe a amassadora.
Cadilhe cedeu ao impulso da "oferta" e ainda
bem porque tirou da pobreza um homem
trabalhador e exemplar na coragem e no
optimismo da sua luta contra a adversidade.
A história de Carlos, pagando pontualmente
os seus encargos, é muito semelhante às
histórias de sucesso do micro-crédito.
A ideia de criar um banco para os pobres
teve na sua génese numa experiência muito
parecida à de Gonçalo Cadilhe. A diferença
está em que Gonçalo é jornalista e não
economista, como Muhammad Yunus, quando este
decidiu criar o Grameen Bank (Banco de
Aldeia em bangladeshi).
Ele tinha 43 anos. Era economista e
professor universitário quando, no início
dos anos 80 decidiu esquecer por momentos a
sabedoria dos livros e as receitas do
doutoramento obtidos nos Estados Unidos para
ir perceber, na prática, as razões da
pobreza do seu país.
Ele próprio sendo o terceiro de treze filhos
nunca fora rico e sempre estudara com bolsas
mas, também, nunca tinha sido tão miserável
como a maioria dos seus compatriotas. A
aldeia de Jobra, perto do campus
universitários, foi o cenário escolhido para
o trabalho de campo sobre as causas da
pobreza.
Um dia, no decorrer desse trabalho
entrevistou uma jovem de 21 anos e três
filhos que fabricava tamboretes de bambu à
porta de uma barraca miserável. Soube que
trabalhava todo o dia para conseguir "dois
cêntimos" de lucro. Era isso que lhe sobrava
depois de pagar os 22 cêntimos (5 taka na
moeda bangladeshi) devidos pela
matéria-prima emprestada pelos
intermediários. No final do dia eles vinham
buscar a mercadoria manufacturada e pagavam
por ela 5 taka e 50 paisa. Sufia Begum
guardava os 50 paisa e devolvia os 5 taka
devidos pelo pagamento do bambu utilizado.
Quando lhe perguntou porque não pedia antes
emprestado o dinheiro para a compra da
matéria prima a mulher revelou-lhe que os
prestamistas exigiam, na melhor das
hipóteses 10 por cento de juro à semana (
mas esse valor podia ir até 10 por cento ao
dia). Era demais!
O economista resistiu a tirar do seu bolso
aqueles 22 cêntimos que podiam mudar a vida
de Sufia. Mais de 20 anos depois, mil
milhões de pessoas no mundo continuam a
viver com menos de um dólar por dia. Yunus
explica que resistiu à dádiva porque "ela
não estava a pedir esmola" e isso não
resolveria mais do que aquele problema. Em
alternativa, decidiu combater as causas que
levavam à pobreza daquela mulher. Criou um
banco para emprestar a quem ninguém
empresta, retirando esse negócio das mãos
dos usurários. O Banco cresceu e mantém-se
rentável, como se exige a qualquer boa
empresa, com uma taxa de mal parado mais
baixa do que no negócio da banca habitual.
Yunus pode orgulhar-se de ter conseguido
arrancar da pobreza vários milhões de
pessoas em todo o mundo.
Entrevistei há poucos anos este banqueiro
original que agora terá 65 anos. Estava em
Lisboa para apoiar um grupo da sociedade
civil que decidira aplicar a sua ideia a
Portugal em parceria com o BCP. Foi uma
entrevista fascinante. Eu estava obcecada
com a ideia de que o sucesso da experiência
no terceiro mundo não era aplicável a
Portugal. Ele acabou a dar-me uma lição que
não esqueço.
Explicou-me que regressava dos Estados
Unidos onde verificara o sucesso do programa
de micro-crédito entre os sem-abrigo de
Chicago e Nova Iorque. Desfiava exemplos. A
mulher que recebera crédito para a compra de
um fogão e dos primeiros ingredientes para
que pudesse finalmente produzir "o melhor
bolo de chocolate do mundo!"; o
financiamento da compra de um carrinho para
a venda na rua de chupas de maçã
caramelizada. A cada impossibilidade de
adequação da sua ideia ao nosso tipo de
pobreza ele respondia com um argumento
validado pela experiência.
No final, disse-me qualquer coisa como isto:
Sabe porque falham muitas medidas de combate
à pobreza? Porque se olham os pobres como
gente diminuída, pouco esperta, forçosamente
preguiçosa, a precisar de seguir os
conselhos dos que se consideram mais sábios
só porque são mais ricos. Isso é totalmente
falso. Os pobres sabem melhor do que ninguém
do que precisam exactamente para sair da
pobreza. Podem até ter muito mais vocação
para o negócio e inteligência do que você.
Quase sempre tiveram apenas menos sorte e
menos instrução, mas não são menos
inteligentes. Sabem, aliás, muito melhor
rentabilizar os seus talentos e lutar pela
sobrevivência. Tal como um rico que queira
tornar-se empresário precisam de crédito mas
dispensam subsídios e esmolas.
Evitei, por decoro, explicar-lhe que por cá
são muitos os ricos pendurados no facto de
serem "geradores de emprego" a não
dispensarem subsídios e a não pagarem
atempadamente as suas dívidas. Pelo
contrário, o Banco dos Pobres exige a todos
os seus clientes o pagamento dos respectivos
empréstimos, até ao último cêntimo. Nenhuma
ajuda é a fundo perdido. Jornalista