Expresso - 31 Out 04
Rocco Buttiglione: um senhor
João César das Neves
«O sectarismo
vanguardista das ideologias jacobinas continua a ser o que era»
O CHAMADO «caso Buttiglione» é mais um triste sinal -
particularmente grave - de como a tradição liberal na Europa está de
novo a ser desvirtuada por correntes jacobinas autoritárias. O
fenómeno é recorrente desde a Revolução Francesa de 1789. Mas não se
esperava que o jacobinismo fosse tão longe nos dias que correm.
Rocco Buttiglione, um «scholar» distinto, começou por ser submetido
a um interrogatório moral absurdo no Parlamento Europeu.
Perguntaram-lhe o que pensa do casamento, das mães solteiras e da
homossexualidade. Ele podia ter habilmente contornado as questões.
Mas é um senhor e respondeu como tal. Explicou que, tal como Kant,
sabia distinguir as suas convicções morais dos preceitos legais. E,
em seguida, expôs francamente as suas convicções católicas,
sublinhando que não pretendia impô-las aos outros: é moralmente
contrário à homossexualidade e a ter filhos fora do casamento; e é
moralmente favorável ao casamento, designadamente porque se trata de
uma instituição que visa proteger a parte mais fraca do contrato -
desde logo as crianças, e também as mães (precisamente o que diz
John Locke no Segundo Tratado).
Seguiu-se um colossal e interminável protesto, ampliado acintosa e
militantemente por grande parte da comunicação social - que, em
muitos casos, simplesmente desvirtuou as declarações de Buttiglione.
O homem seria um «católico perigoso», etc, etcŠ A algazarra foi
tamanha que Durão Barroso optou por adiar a votação, prevista para
quarta-feira passada.
Os comentários centraram-se então na decisão de Barroso. Mas a
verdadeira questão reside nas circunstâncias que o forçaram a tomar
aquela decisão. E essas ensinam-nos pelo menos duas coisas.
Em primeiro lugar, ficámos a saber que, no Parlamento Europeu - bem
como entre repórteres que supostamente deviam informar e não opinar
- existem opiniões que não são permitidas.
Em segundo lugar, ficámos a saber que muitas dessas opiniões
coincidem com as que milhões de pessoas comuns - católicas e não
católicas - transmitem aos filhos, por essa Europa fora: que, embora
os homossexuais devam ser respeitados, a homossexualidade não é
equivalente à heterossexualidade; que, se quiserem ter filhos, devem
assumir um contrato duradouro chamado casamento.
Destas duas lições sairão as consequências de longo alcance deste
episódio, e elas vão seguramente fazer-se sentir muito depois de o
problema da votação da Comissão Europeia ter sido resolvido: milhões
de pessoas comuns na Europa - pessoas que trabalham, pagam impostos
e cuidam dos seus filhos sem se imiscuir nos assuntos dos outros -
milhões de pessoas como essas vão sentir-se acossadas nas suas
convicções e na liberdade de as exprimir sem prejudicar terceiros.
Em última análise, vão sentir-se ameaçadas no seu direito a
livremente educarem os seus filhos de acordo com as suas convicções.
Que esta sensação de insegurança no usufruto de liberdades básicas
possa emanar de um Parlamento, ou de metade dele, é motivo de
profunda tristeza para um liberal - como, de certa forma, foi
eloquentemente referido pelo Comissário britânico, o trabalhista
Peter Mandelson. Mas as coisas são o que são, como gostava de
repetir o grande liberal inglês Isaiah Berlin. E o sectarismo
vanguardista das ideologias jacobinas continua a ser o que era.
jcespada@netcabo.pt
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