Diário de Notícias - 27 Out 04 Tentar perceber
Um equívoco
Francisco sarsfield cabral
Jornalista
Blair provocou recentemente celeuma na
Grã-Bretanha ao atacar a permissividade trazida pelos anos 60. Daí,
disse ele, resultou uma sociedade onde os jovens não têm disciplina
familiar ou escolar. Uma sociedade sem regras, nem modelos, nem
sentido da responsabilidade. Ora aquilo que Blair e muitos outros
hoje criticam era na altura visto (em parte pelos mesmos, se calhar)
como uma redentora mudança de civilização. Um professor de Harvard,
Charles Reich, escreveu em 1970 um best-seller, The
greening of América, proclamando estar em curso uma revolução,
diferente das revoluções do passado, «com origem no indivíduo e na
cultura», revolução que iria «mudar a estrutura política apenas na
sua fase final». Antes disso mudaria a sociedade, acabando com o
capitalismo. Afinal, dez anos depois era Reagan Presidente em
Washington e a juventude americana fascinava-se com a especulação na
bolsa.
Mais intrigante ainda: como é que uma cultura de paz e amor, de
festa libertadora e florida, se transformou em pouco tempo numa
ânsia egoísta de enriquecimento pessoal, num individualismo sem
escrúpulos na competição feroz, numa cínica indiferença perante a
guerra, a pobreza e o sofrimento dos outros?
É que a originalidade e a valia da cultura hippie não foram
tantas quanto a mitificação dos anos 60 pretende fazer crer. Com o
«é proibido proibir», a revolução sexual, as drogas, etc.,
afirmava-se a gratificação pessoal como valor supremo. Era o triunfo
do individualismo. Mais um passo, e perdeu-se o sentido do social,
da res publica, da solidariedade. Até porque o colapso do
comunismo desacreditou as esperanças de mudar o mundo, cada um foi
tratar da sua vida sem querer saber de mais. O contraste entre a
festa dos anos 60 e o crasso materialismo que se lhe seguiu é um
equívoco.
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