Público - 26 Out 04
Misérias
Humanas
A miséria
não é só pobreza e fome: é nalgumas situações um ciclo de sordidez
que se torna forma de vida. Importa perceber porquê e como
combatê-lo
Uma reportagem
de Ricardo Felner revelava-nos, no PÚBLICO deste domingo, os
contornos sórdidos de um infanticídio e de um suicídio em Ansião,
terra rural mas a dois passos de uma das zonas mais ricas do nosso
litoral. Há algumas semanas o mesmo jornalista levava-nos a conhecer
a miséria social e moral dos familiares da pequena Joana. Ler os
seus textos foi como abrir uma janela para as traseiras escondidas
de Portugal, um mundo que vive à margem - e também na margem do que
é humano e do que é inumano. Ambas nos revelaram uma brutalidade, um
horror feito de um quotidiano sem horizontes, sem meios e, também,
fechado voluntariamente na concha da própria desgraça.
A semana
passada, durante a cerimónia de entregue do prémio de solidariedade
social entregue pela Fundação Gulbenkian com o apoio do PÚBLICO à
associação Comunidade Vida e Paz foi recordado um número
impressionante: só no concelho de Lisboa são todos os anos
enterrados mais de 250 jovens sem que as autoridades tenham
conseguido localizar as suas famílias. Famílias que eles abandonaram
ou que os abandonaram. Jovens que tinham perdido raízes,
referências, vontade de viver.
Estas são
realidades que convivem connosco, no século XXI, e que tendo origens
muito diversas, são apenas exemplos de misérias ainda mais profundas
que a pobreza ou a fome: são sinais dos que ficam sempre à parte ou
se colocam à margem. E repare-se que colocar-se à margem traduz uma
realidade social que ultrapassa a simples disponibilidade de
recursos financeiros mínimos para os arrancar dessa margem, antes
traduz culturas que se deixam prender pela mais entranhada miséria.
Miséria humana, profunda, em todas as suas diferentes dimensões.
Estas são
realidades que, ao contrário do que muitas vezes imaginamos - até
para termos a consciência mais tranquila -, não podem nem devem ser
entregues apenas ao Estado. Porque ele não é capaz. Porque ele não
está vocacionado para exercer a misericórdia necessária para tratar
cada um destes casos como um caso mas antes, e apenas, para criar
condições que previnam que se caia na miséria extrema, ou não se
saia dela, quando se luta e se merece. É por isso que entidades como
a Comunidade Vida e Paz, os seus voluntários que distribuem comida
pelos sem abrigo nas noites de Lisboa, os que ajudaram a desenvolver
os centros onde a associação recolhe os que querem sair da rua e os
ajuda a encontrarem uma nova vida, apresentam resultados que o
Estado é incapaz de alcançar.
Isso é bem
visível num desses pedaços do país onde a miséria é um ciclo onde
comunidades inteiras se deixam prender numa cultura de miséria, de
imundice, de degradação e de promiscuidade: Rabo de Peixe. Há
décadas a fio ali se constroem bairros sociais, se erguem escolas,
se criam estruturas de apoio social, e o ciclo não se quebra. Porque
ele está para lá do dinheiro de que se dispõe para distribuir.
Porque ele está enraizado nos hábitos de quem nunca soube viver de
outra forma.
Resgatar esta
gente - como os protagonistas das reportagens e das tragédias que aí
se reconstituíam - exige resgatar os que já passaram para o lado de
lá e, sem gestos e acções que tratem cada pessoa na sua unicidade,
nunca voltarão ao lado de cá. Porque é mais fácil o álcool para
adormecer as dores. A violência doméstica para descarregar as iras.
A droga para esquecer o mundo. E o desleixo e o desmazelo que não
dão trabalho nem criam responsabilidades.
José Manuel
Fernandes
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