Público - 25 Out 04

Os Extremos Tocam-se
Por MÁRIO PINTO

1. Num livro que saiu recentemente, tradução portuguesa do primeiro volume do famoso tratado de Francisco Suárez "De Legibus", pode admirar-se o mérito filosófico de um ibérico famoso, que verdadeiramente foi um grande mestre da escolástica tardia (o "doutor exímio") e um grande mestre precursor da Idade Moderna. Jesuíta ilustre, foi professor de Coimbra, onde aliás saiu a edição original do referido tratado. A modernidade deve também aos jesuítas (Descartes foi formado na escola dos jesuítas e estudou por Suárez); jesuítas que, por sua vez, devem decisivamente à escolástica; a qual deve à patrística; que deve à geração católica apostólica e à filosofia grega.

Até à modernidade, os sábios e eruditos reconheciam estas dívidas sucessivas, prova de liberdade de espírito, simultaneamente admiração e crítica do património de pensamento herdado e desejo de ir mais além. Naturalmente com episódios de intolerância. O pior deles foi a Inquisição, uma vitória do regalismo em que uma parte da Igreja chegou a perseguir a outra parte.

A própria modernidade foi aberta por pensadores crentes, dos mais ilustres. Porém, na modernidade rebentou uma bolha de intolerância anti-religiosa que não pode esquecer-se. Com o iluminismo autoritário e o republicanismo radical, cheios de soberba presunção, houve períodos em que o novo pensamento tratou mal os anteriores (recorde-se entre nós o ditador Pombal; recorde-se o republicanismo de Afonso Costa, que prometia publicamente o genocídio do catolicismo em duas gerações). A democracia liberal ocidental consagrou as bases de conceitos humanistas de direitos e liberdades pessoais, os quais têm sido, e espera-se que continuem a ser, os fundamentos de uma civilização universal de liberdade, igualdade, fraternidade e paz. Contudo, hoje o pós-modernismo trata mal a própria modernidade e o humanismo naturalista. E o chamado "pensamento politicamente correcto", que anda na moda, está lançando uma razia contra tudo quanto era dantes, numa intolerante "fúria fracturante". Com uma significativa cumplicidade comercial dos "media".

2. Tenho em mente o apavorante episódio contra Buttiglione, no Parlamento Europeu. Primeiro, alguns deputados bombardearam-no com perguntas sobre as suas convicções pessoais sobre o casamento e a homossexualidade. Como católico que é, foi claro e desassombrado, expondo, afinal, a doutrina da Igreja Católica. Mas esclareceu que essas convicções não o levavam a criminalizar os "pecados" pela não observância da moral cristã que defendia: uma coisa são as convicções religiosas, éticas e morais cristãs, que ele pessoalmente defende, outra coisa é a política social e cultural em democracia, que possui autonomia, embora deva respeitar o direito natural (e, neste combate cívico e político, cada um defende as suas convicções com igual legitimidade).

O alarido foi tal que tomou forma de campanha de imprensa. Distorceram-se as declarações do comissário, caricaturando-as. Foi evidente uma manifestação de fundamentalismo laicista. Chegou-se à ameaça de não viabilidade da Comissão.

3. Sucede que partilho as convicções católicas de Rocco Buttiglione, e gostaria de saber se isso é um impedimento para o exercício de funções políticas governativas (em certas áreas... só por enquanto). Não que seja candidato, mas só para saber qual é o meu estatuto cívico. Isto é: a democracia do século XXI não excluiria ninguém, por delito de opinião, do exercício dos seus direitos políticos, excepto os católicos coerentes. Coerentes são os que livremente estão em união (de inteligência e de vontade) com a doutrina e a autoridade da Igreja - porque há muitos, e até padres, que fazem uma administração autónoma da doutrina e se importam pouco com os mistérios (isto... digo eu).

Neste terceiro milénio, o único crime de opinião seria então o de ser católico; e a pena correspondente a de exclusão de funções políticas por suspeito em matéria de direitos humanos. Nunca, na Europa ocidental do pós-guerra, nenhum comunista convicto das suas convicções marxistas-leninistas, as quais negavam o conceito ocidental dos direitos humanos como direitos universais, foi assim pública e internacionalmente julgado num fórum parlamentar como indigno de confiança política! Álvaro Cunhal (político sempre tão elogiado pela sua coerência), disse claramente a Portela Filho, numa célebre entrevista à revista "Opção" (nº 45), que ele via as situações de liberdade "com espírito de classe, não com critérios gerais e universais". Ora, jamais ouvi que por isso o ilustre comunista devesse ser impedido de ser ministro ou deputado. Buttiglione não disse nada que se parecesse.

Os defensores do casamento homossexual em igualdade com o casamento heterossexual têm podido manifestar-se e reclamar a não discriminação pelas suas "orientações sexuais". Pelos vistos, os católicos têm de preparar-se para também fazerem manifestações reclamando a não discriminação pelas suas "orientações religiosas". É que este episódio não é insignificante nem isolado. Em lugares diversos desta Europa dos direitos humanos, e em nome dos ditos direitos humanos (e talvez em resultado da novíssima revolução francesa que foi a lei escolar contra os símbolos religiosos), estão a multiplicar-se casos de repressão e condenação de crentes: porque ostentam sinais religiosos por vestirem uma batina (caso de um padre em Toulon); porque se manifestam contra os casamentos de homossexuais (pastor protestante na Suécia); porque usam véus religiosos equiparados aos véus muçulmanos (freiras no Baden-Wurtenberg); vários alunos islâmicos e sikhs, em França; etc. Os católicos que se cuidem. É prudente revisitar as catacumbas.

4. O fenómeno é contudo mais complexo. Veja-se agora esta maldosa tolice das campanhas contra Fátima, por causa do acolhimento inter-religioso. Fátima foi, durante muitas décadas, maltratada pelos progressistas e laicistas como lugar de conservadorismo e integrismo. Agora, são alguns alegados fundamentalistas que a maltratam por ser o oposto: lugar de progressismo inter-religioso. Tratando-se de uma campanha de origem não bem identificada, e invocando-se factos que são facilmente verificáveis como falsos, note-se o eco que lhe tem sido dado. Designadamente por alguns jornalistas especialistas nas questões religiosas - se se tratasse de um elogio ao acolhimento inter-religioso no santuário, não teria sido notícia. Mais uma vez se pode dizer que os extremos se tocam.

Professor universitário

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